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O dinheiro do enterro
FREDERICO VASCONCELOS
Dona Marineide dos Santos é uma
mulher simples, de poucos recursos e
letras. Não é dada a escrever cartas.
Mas numa emergência, no dia 4 de
novembro, usou o serviço de vale postal da Empresa Brasileira de Correios
e Telégrafos, em Tietê, interior de São
Paulo, para remeter R$ 265 a um parente, em Ribeirão Branco (SP). Era a
sua parte nas despesas do sepultamento de um familiar.
Dona Marineide não lida com números. Não sabe que, naquele dia, os
Correios realizavam 16,7 milhões de
entregas, entre as quais a sua remessa,
tão emergencial. Mas o que representa
um vale postal entre dois municípios,
num universo de encomendas e mensagens telemáticas que exigem um
exército de 80 mil empregados?
Dona Marineide desconhece as pesquisas que indicam que os Correios
são a instituição de maior confiabilidade no Brasil. Sua dolorosa experiência, contudo, mostrou que o seu dinheiro, tão esperado, não chegou ao
destino.
Dona Marineide não conhece a lei
sobre os serviços postais, que regula
os direitos e obrigações dos Correios,
mas foi se informar sobre o extravio.
No dia 25 de novembro, Sílvio Faria
Filho, agente dos Correios, confirmou
por carta que o dinheiro não entrara
na agência de Ribeirão Branco.
Dona Marineide não sabe que a lei
que regula o serviço postal dispõe que
os Correios devem "promover formação e treinamento de pessoal sério
ao desempenho de suas atribuições".
Não tinha por que duvidar do sr. Sílvio, que dizia que seu dinheiro se extraviara por "falhas da burocracia".
Dona Marineide mora no campo,
mas assiste à televisão. Deve ter imaginado que a tal crise chegou a um ponto em que os Correios não tinham como devolver o seu dinheiro. A crise é
brava, mas os Correios ainda dispõem
de fôlego para aplicar algo como mil
vezes o vale postal extraviado para patrocinar uma mostra na Bienal.
Dona Marineide e seus parentes ficaram sem ver a cor do dinheiro. Mas
o que representa seu vale postal diante
dos R$ 45 milhões que os Correios
gastam para agências premiadas de
publicidade nos dizerem que os serviços postais brasileiros estão entre os
mais avançados do mundo?
Dona Marineide deve ter horizontes
limitados; não sabe que os Correios
investem R$ 500 milhões por ano para
comprar equipamentos e melhorar as
técnicas de atendimento. E que obtiveram financiamento externo para
contrato de R$ 31,5 milhões com duas
multinacionais, que fornecerão novo
sistema para rastrear objetos. Quem
sabe, no futuro, extravios como o de
seu vale postal não ocorrerão.
Dona Marineide não sabe o que é
globalização e neoliberalismo, não deve atinar para os tais mecanismos de
proteção aos consumidores. Sabe
quanto custa uma passagem de ônibus para reclamar o reembolso do que
lhe é devido, mas não tem idéia do
que sejam as "falhas da burocracia".
Dona Marineide não lê jornais e não
deverá ficar sabendo por esta coluna
que, 50 dias depois de sua angústia, os
Correios -em menos de uma hora-
confirmaram a grande injustiça e
anunciaram que o dinheiro estaria
disponível na agência, naquele dia.
Dona Marineide não imagina, mas a
estatal só foi ágil depois que um jornalista levou o fato ao conhecimento da
assessoria da presidência da empresa,
em Brasília. Convenhamos, diante da
complexidade da burocracia, tratava-se apenas do dinheiro para o enterro de um anônimo, não é mesmo?
Frederico Vasconcelos é repórter especial da Folha.
Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Boris Fausto, que escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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