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FERNANDO CANZIAN
Clima ruim
Boa parte da região leste dos Estados Unidos sofre há um mês as
consequências da segunda maior onda de nevascas em 133 anos de acompanhamento do Serviço Nacional de
Meteorologia americano. O epicentro
do gelo, vento e chuvas torrenciais é
Washington D.C., a capital do país.
Nas últimas semanas, dois grandes
assuntos dividem o noticiário da TV e
dos jornais. Paisagens brancas, mortes, lista de escolas fechadas e vendas
recordes de pás para remoção de neve
-um exercício e tanto- disputam a
atenção dos americanos com Saddam
Hussein, "seu filho estuprador", os
miseráveis do Iraque e as tropas americanas com seus "robocops" paramentados.
Na capital do império da suposta razão, do manual e da técnica, todo o desafio agora é a conquista de corações e
mentes. O sentido é o mesmo: o da
inevitabilidade de uma guerra. A hipnose coletiva que parece ter tomado
conta de grande parte da mídia reverbera em meio ao seu público. O resultado é que não se fala de outra coisa.
A ponto de um dos mais influentes
jornais do país, "The Washington
Post", ter sido levado a dar explicações
a seus leitores, em texto de meia página, sobre sua linha editorial. "Batendo
tambores sobre o Iraque? Uma resposta aos leitores" saiu quinta-feira.
Anteontem, na capa do jornal, havia
somente quatro lacônicas linhas reportando que Saddam Hussein iniciara a destruição dos mísseis proibidos
Al Samoud 2. Ao lado, o "Post"" anunciava material especial ao longo de três
páginas com detalhes de como os
EUA pretendem derrotar o inimigo.
Nesse clima não é nada surpreendente que os americanos tenham, há
duas semanas, efetivamente esvaziado
prateleiras de galões de água, enlatados e fitas plásticas para selar cômodos de suas casas para a eventualidade
de ataques biológicos. Durante a vigência do "código laranja", o penúltimo na escala da iminência de ações
terroristas, autoridades davam como
certa uma tragédia. Equipamentos antimísseis circularam pela cidade, reservatórios eram vigiados, carros foram parados sem mais nem menos
nas proximidades de aeroportos, e
mais policiais e militares foram vistos
nas ruas.
O "código laranja" coincidiu com
um período de pressões de George W.
Bush sobre as Nações Unidas por uma
autorização para atacar o Iraque. Mas
a única explicação das autoridades dada pela mídia quando o "laranja" voltou a dar lugar ao "amarelo" foi que
"algumas prisões, grampos e interrogatórios" indicavam que o perigo de
um ataque havia diminuído. Quais
prisões? Gravações? Interrogatórios
de quem? Onde? Quando? Esse tipo de
pergunta parece não ter o menor sentido ou pertinência.
A única notícia concreta dada ao público nesse campo minado foi a prisão, no final de semana, de Khalid
Sheikh, acusado de ser um dos mentores dos ataques de 11 de setembro de
2001. Talvez isso explique a euforia de
Bush com o seu "isso é fantástico!".
Com um cenário a seu favor cada
vez mais turvo no campo internacional, e com o Iraque iniciando a destruição de mísseis proibidos, pode-se
até pensar que Bush agora venha a ser
obrigado a recuar. Afinal se renderia
ao resto do mundo contrário à guerra.
Pode ser. Seria como se a primavera,
que marcou sua estréia no fim de semana, fosse capaz de dar cabo já no
clima terrível que tomou conta do lugar.
Fernando Canzian é correspondente da Folha em Washington. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Roberto Mangabeira Unger, que escreve às terças-feiras nesta coluna.
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