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São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003

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FERNANDO CANZIAN

Clima ruim

Boa parte da região leste dos Estados Unidos sofre há um mês as consequências da segunda maior onda de nevascas em 133 anos de acompanhamento do Serviço Nacional de Meteorologia americano. O epicentro do gelo, vento e chuvas torrenciais é Washington D.C., a capital do país.
Nas últimas semanas, dois grandes assuntos dividem o noticiário da TV e dos jornais. Paisagens brancas, mortes, lista de escolas fechadas e vendas recordes de pás para remoção de neve -um exercício e tanto- disputam a atenção dos americanos com Saddam Hussein, "seu filho estuprador", os miseráveis do Iraque e as tropas americanas com seus "robocops" paramentados.
Na capital do império da suposta razão, do manual e da técnica, todo o desafio agora é a conquista de corações e mentes. O sentido é o mesmo: o da inevitabilidade de uma guerra. A hipnose coletiva que parece ter tomado conta de grande parte da mídia reverbera em meio ao seu público. O resultado é que não se fala de outra coisa.
A ponto de um dos mais influentes jornais do país, "The Washington Post", ter sido levado a dar explicações a seus leitores, em texto de meia página, sobre sua linha editorial. "Batendo tambores sobre o Iraque? Uma resposta aos leitores" saiu quinta-feira. Anteontem, na capa do jornal, havia somente quatro lacônicas linhas reportando que Saddam Hussein iniciara a destruição dos mísseis proibidos Al Samoud 2. Ao lado, o "Post"" anunciava material especial ao longo de três páginas com detalhes de como os EUA pretendem derrotar o inimigo.
Nesse clima não é nada surpreendente que os americanos tenham, há duas semanas, efetivamente esvaziado prateleiras de galões de água, enlatados e fitas plásticas para selar cômodos de suas casas para a eventualidade de ataques biológicos. Durante a vigência do "código laranja", o penúltimo na escala da iminência de ações terroristas, autoridades davam como certa uma tragédia. Equipamentos antimísseis circularam pela cidade, reservatórios eram vigiados, carros foram parados sem mais nem menos nas proximidades de aeroportos, e mais policiais e militares foram vistos nas ruas.
O "código laranja" coincidiu com um período de pressões de George W. Bush sobre as Nações Unidas por uma autorização para atacar o Iraque. Mas a única explicação das autoridades dada pela mídia quando o "laranja" voltou a dar lugar ao "amarelo" foi que "algumas prisões, grampos e interrogatórios" indicavam que o perigo de um ataque havia diminuído. Quais prisões? Gravações? Interrogatórios de quem? Onde? Quando? Esse tipo de pergunta parece não ter o menor sentido ou pertinência.
A única notícia concreta dada ao público nesse campo minado foi a prisão, no final de semana, de Khalid Sheikh, acusado de ser um dos mentores dos ataques de 11 de setembro de 2001. Talvez isso explique a euforia de Bush com o seu "isso é fantástico!".
Com um cenário a seu favor cada vez mais turvo no campo internacional, e com o Iraque iniciando a destruição de mísseis proibidos, pode-se até pensar que Bush agora venha a ser obrigado a recuar. Afinal se renderia ao resto do mundo contrário à guerra.
Pode ser. Seria como se a primavera, que marcou sua estréia no fim de semana, fosse capaz de dar cabo já no clima terrível que tomou conta do lugar.


Fernando Canzian é correspondente da Folha em Washington. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Roberto Mangabeira Unger, que escreve às terças-feiras nesta coluna.

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