São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Riscos sistêmicos da guerra do Iraque
GILBERTO DUPAS
Dizíamos neste mesmo espaço, em dezembro passado, que uma das chagas expostas da Europa é a Otan. Os princípios e valores que a fizeram nascer desapareceram e ela nada mais tem a ver com a nova União Européia. Não existe mais o comunismo nem o Pacto de Varsóvia, mas a Otan resiste, funcionando agora como mera ponta-de-lança dos interesses militares dos EUA na Europa, disfarçados de combate ao terrorismo. O caso da Turquia é emblemático dessa grande confusão. Incrustada no extremo Leste da Europa, ela é um dos países-chave na geopolítica do Oriente Médio. Faz fronteira, por um lado, com o Irã, o Iraque e a Síria; e por outro, diretamente ou através do mar Negro, com a Rússia e as franjas do ex-império soviético, como a Bulgária, a Ucrânia, a Geórgia e a Armênia. Durante a Primeira Guerra, aliada aos perdedores, a Turquia assistiu ao desmantelamento do Império Otomano e foi submetida às humilhantes condições do Tratado de Sèvres, de 1920. Na Segunda Guerra, perfilou com os Aliados, tendo depois se transformado no bastião anti-soviético na região, autorizando a implantação de inúmeras bases militares norte-americanas em seu território. A partir dos anos 80, já membro da Otan, o país começou a tentar sua entrada na Comunidade Econômica Européia, mudando a Constituição -tornando-a mais democrática- e adotando o liberalismo econômico. No entanto, com população majoritariamente islâmica, o país vem sendo rejeitado em suas pretensões de ser recebido na Europa. Seus esforços recentes para conter o crescimento do radicalismo islâmico tiveram efeitos contrários aos almejados. Em 2001, a Suprema Corte turca extinguiu o Partido da Virtude, por julgá-lo extremista. Os bens de seus partidários foram confiscados e eles foram proibidos de exercer atividade política por cinco anos. O ato foi considerado antidemocrático e ofensivo à liberdade de expressão e foi alinhado como mais um argumento para o adiamento das "démarches" com a UE. Meses atrás, Giscard D'Estaing, na condição de presidente do Parlamento Europeu, lançou a pá de cal nas pretensões da Turquia, ao declarar que "ela não pertence à Europa". Agora a Turquia volta a ser fundamental para o apoio logístico norte-americano no ataque ao Iraque. Depois do bloqueio de França, Alemanha e Bélgica à ajuda militar da Otan ao país sob pretexto de defendê-lo do Iraque em caso de guerra com os EUA, deflagrando uma séria crise no bloco, o país resolveu barganhar diretamente com os EUA uma ajuda financeira de até US$ 15 bilhões -como compensação pelo direito dos EUA de utilizarem bases logísticas em seu território. Na verdade, a ampliação da UE, trazendo para dentro dela os antigos inimigos, é outra grande contradição. Os 15 atuais membros da união teriam 94% do PIB total após a eventual entrada dos novos 13 membros. No entanto contariam com apenas dois terços da população total. Isso define claramente a complexidade da situação, dado que o novo conjunto ampliado teria um peso muito desproporcional dos países pobres e pequenos pelo critério do voto universal. Enquanto isso, aprofunda-se a opção da Grã-Bretanha, de Tony Blair, de apoio irrestrito à estratégia dos EUA no Iraque, confrontando Alemanha e França. Trata-se de um recado de Blair para que os dois pesos-pesados europeus não isolem seu país das decisões fundamentais sobre o futuro da Europa. Por iniciativa de Grã-Bretanha e Itália, também Espanha, Portugal e Dinamarca aderiram aos planos norte-americanos de ataque ao Iraque, trazendo consigo três dos países do Leste: Hungria, Polônia e República Tcheca. O trecho do documento de apoio fala da "bravura, generosidade e grande clarividência dos americanos, libertando a Europa das ditaduras do nazismo e do comunismo". Reagindo a essa adesão, Chirac acusou esses três países de infantis e irresponsáveis, tendo "perdido uma oportunidade para ficarem calados". Como vemos, a estratégia belicosa norte-americana, desvinculada das normas e instituições, tenderá a gerar crescente divisão e hostilidade, ameaçando os próprios objetivos almejados. Se o país hegemônico opera uma intervenção sem provas que justifiquem a legalidade da ação, o mesmo comportamento poderá se disseminar pelos outros países. Ao mesmo tempo, a proliferação de armas de destruição em massa e dos atentados terroristas de impacto poderá se transformar na única alternativa para aqueles grupos e países que quiserem se contrapor ao poder hegemônico. O que não parece contribuir para a ordem internacional e a paz. O mundo global não pode prescindir das virtudes hegemônicas dos EUA, até porque tão cedo não haverá candidato à vista que possa substituí-las. A maior qualidade hegemônica é favorecer a governabilidade do sistema mundial, reconhecendo diferenças, mediando crises e confrontos e possibilitando gestos simbólicos em direção às nações e povos atingidos por excessiva exclusão e precariedade. Se os EUA não assumirem o papel condizente com seu poder, o que inclui, antes de tudo, a tolerância com as diferenças, teremos grandes probabilidades de viver um século marcado pelas dores de um forte retrocesso. Gilberto Dupas, 60, economista, é coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional, da USP, e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais. É autor de "Hegemonia, Estado e Governabilidade" (Senac), entre outros livros. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak: Curriculite Índice |
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