São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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IGREJA E ESCRAVIDÃO

A Igreja Católica, como toda instituição fundada sobre dogmas, apresenta certa rigidez para adaptar-se aos tempos e aos costumes. Foram necessários séculos para que reconhecesse a impossibilidade de impor seu magistério à cosmologia de Galileu Galilei; ou muitas décadas, no caso da teoria da evolução segundo Charles Darwin. O mesmo padrão de defasagem histórica foi observado com respeito ao tema moralmente muito mais relevante da escravidão.
Conforme noticiado nesta Folha, a igreja brasileira anuncia que tornará público, por ocasião dos 500 Anos do Brasil, um pedido de perdão a negros e índios por seu silêncio e participação no fato abominável, cujas marcas ainda enodoam a cultura do país, na forma da discriminação racial. É iniciativa a ser saudada por católicos e não-católicos, descendentes ou não dos cativos e seviciados. Ainda que de pouco efeito prático, tal reconhecimento tem o mérito de corrigir e enriquecer o registro histórico desse capítulo tenebroso.
A rigor, tal movimento se iniciou há 111 anos. Um mês depois de abolida a escravidão no último grande país a manter negros sob grilhões, o papa Leão 13 publicou, em junho de 1888, encíclica condenando o trabalho escravo. Em 1992, João Paulo 2º reiterou o pedido de perdão por eventuais abusos contra negros e índios na América. Parece ser a tradução e a difusão desse pronunciamento papal aos fiéis do país que o episcopado planeja debater na 37ª Assembléia Geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), este mês.
Para fazer justiça à história, contudo, impõe-se diferenciar os papéis desempenhados pela Igreja Católica num e noutro caso, o dos índios e o dos negros do Brasil.
A escravização dos nativos nunca sucedeu na escala necessária para sustentar o empreendimento colonial. Entre outras razões, porque tal projeto entrou frequentemente em conflito com o das missões jesuíticas. Por ambivalente que tenha sido seu significado -catequese e educação ou aculturação forçada?-, não é possível negar que a Igreja Católica ofereceu importante contrapeso às atividades predatórias que levaram à virtual aniquilação dos índios. O abuso de escravos indígenas chegou a ser explicitamente condenado em bula teológica de Paulo 3º, em 1537.
Diversa foi a atitude em relação aos negros. Alguns teólogos católicos justificavam sua escravização, com base em estigmas de nascimento e raça -os negros já viriam ao mundo condenados a ela, nessa justificação tão insustentável quanto útil para os senhores de engenho. Mais ainda, tal utilidade era diretamente explorada por certas ordens religiosas, proprietárias de escravos negros.
Pedir perdão por esses atos e omissões, como se dispõe a fazer a igreja, implica a admissão de erros e mesmo de contradições -que hoje parecem evidentes- com o cerne da doutrina católica. Ou ela não é atemporal e universal, como se pretende, ou são os homens que a compõem aqueles que erram na interpretação e aplicação das verdades eternas. O debate a ser aberto na CNBB tem por consequência pôr a Igreja Católica mais perto da história.


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