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IGREJA E ESCRAVIDÃO
A Igreja Católica, como toda instituição fundada sobre dogmas, apresenta certa rigidez para adaptar-se
aos tempos e aos costumes. Foram
necessários séculos para que reconhecesse a impossibilidade de impor
seu magistério à cosmologia de Galileu Galilei; ou muitas décadas, no caso da teoria da evolução segundo
Charles Darwin. O mesmo padrão de
defasagem histórica foi observado
com respeito ao tema moralmente
muito mais relevante da escravidão.
Conforme noticiado nesta Folha, a
igreja brasileira anuncia que tornará
público, por ocasião dos 500 Anos
do Brasil, um pedido de perdão a negros e índios por seu silêncio e participação no fato abominável, cujas
marcas ainda enodoam a cultura do
país, na forma da discriminação racial. É iniciativa a ser saudada por católicos e não-católicos, descendentes
ou não dos cativos e seviciados. Ainda que de pouco efeito prático, tal reconhecimento tem o mérito de corrigir e enriquecer o registro histórico
desse capítulo tenebroso.
A rigor, tal movimento se iniciou há
111 anos. Um mês depois de abolida a
escravidão no último grande país a
manter negros sob grilhões, o papa
Leão 13 publicou, em junho de 1888,
encíclica condenando o trabalho escravo. Em 1992, João Paulo 2º reiterou o pedido de perdão por eventuais
abusos contra negros e índios na
América. Parece ser a tradução e a difusão desse pronunciamento papal
aos fiéis do país que o episcopado
planeja debater na 37ª Assembléia
Geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), este mês.
Para fazer justiça à história, contudo, impõe-se diferenciar os papéis
desempenhados pela Igreja Católica
num e noutro caso, o dos índios e o
dos negros do Brasil.
A escravização dos nativos nunca
sucedeu na escala necessária para
sustentar o empreendimento colonial. Entre outras razões, porque tal
projeto entrou frequentemente em
conflito com o das missões jesuíticas. Por ambivalente que tenha sido
seu significado -catequese e educação ou aculturação forçada?-, não é
possível negar que a Igreja Católica
ofereceu importante contrapeso às
atividades predatórias que levaram à
virtual aniquilação dos índios. O
abuso de escravos indígenas chegou
a ser explicitamente condenado em
bula teológica de Paulo 3º, em 1537.
Diversa foi a atitude em relação aos
negros. Alguns teólogos católicos
justificavam sua escravização, com
base em estigmas de nascimento e
raça -os negros já viriam ao mundo
condenados a ela, nessa justificação
tão insustentável quanto útil para os
senhores de engenho. Mais ainda, tal
utilidade era diretamente explorada
por certas ordens religiosas, proprietárias de escravos negros.
Pedir perdão por esses atos e omissões, como se dispõe a fazer a igreja,
implica a admissão de erros e mesmo
de contradições -que hoje parecem
evidentes- com o cerne da doutrina
católica. Ou ela não é atemporal e
universal, como se pretende, ou são
os homens que a compõem aqueles
que erram na interpretação e aplicação das verdades eternas. O debate a
ser aberto na CNBB tem por consequência pôr a Igreja Católica mais
perto da história.
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