São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil e a crise mundial de alimentos

GUILHERME CASSEL


Estamos convencidos de que essa crise coloca em discussão o modelo mundial de produção e abastecimento de alimentos


O MUNDO está assistindo a uma inflação dos preços dos alimentos de dimensões preocupantes, com repercussões na segurança alimentar mundial. Estamos convencidos de que essa crise coloca em discussão o modelo mundial de produção e abastecimento de alimentos. A situação atual exige uma reflexão séria e responsável. Existem pelo menos quatro grandes fatores que explicam o movimento dos preços agrícolas.
O primeiro é a produção de etanol de milho pelos EUA. O país usa nada menos que 10% da produção mundial de milho para produzir etanol. Isso equivale a duas safras brasileiras de milho. É desnecessário comentar o quanto tal demanda contribui para o aumento dos preços. Só no ano passado, houve um incremento de 37% no uso de milho para etanol nos EUA.
O segundo elemento é a especulação financeira. Como conseqüência da crise imobiliária norte-americana, da desvalorização do dólar e da volta da inflação com baixo crescimento econômico nos países desenvolvidos, as commodities são o novo destino dos especuladores financeiros.
Outro componente é a demanda dos países em desenvolvimento (PEDs), principalmente China e Índia, puxada pelo crescimento populacional e pela mudança do padrão alimentar. Contudo, conforme salienta a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), há um pequeno decréscimo no consumo per capita de cereais nos PEDs.
O que explica a aparente contradição desse fenômeno é que faixas importantes de população dos PEDs entraram na esfera de consumo da classe média. O consumo de carne, por exemplo, cresceu 100% na China, 70% no Brasil e 20% na Índia nos últimos 15 anos. Como são necessários, em média, 7 kg de cereais para produzir 1 kg de carne, a mudança no padrão alimentar também está inflacionando o preço dos cereais.
De outro lado, essa elevação de preços afeta de maneira dramática os 2,5 bilhões de pessoas que vivem com menos de US$ 2 por dia.
Finalmente, concorrem a alta do preço do petróleo e os problemas de safras causados pelo aquecimento global. Há importantes perdas de produção em países como Austrália e alguns países africanos relacionados diretamente aos problemas climáticos.
É importante ressaltar que o Brasil está conseguindo enfrentar a crise dos preços agrícolas por causa da presença de um vigoroso setor de agricultura familiar, que produz 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros e pelas brasileiras.
Desde 2003, desenvolvemos uma estratégia de fortalecimento dessa agricultura, com políticas públicas de crédito, seguro agrícola, assistência técnica e extensão rural.
Ao mesmo tempo, desenvolvemos e estruturamos uma política nacional de segurança alimentar articulada em torno do Fome Zero. Fomos além, com a institucionalização dessa estratégia por meio da Lei da Agricultura Familiar e da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. Enquanto o índice dos preços agrícolas internacionais subiu 83% nos últimos 36 meses, a cesta básica brasileira subiu 25% no mesmo período.
O leite, um produto tipicamente de agricultura familiar no Brasil, teve um aumento de preço de 120% no mercado internacional nos últimos 24 meses, mas no país o aumento foi de 25%. Isso se deve ao aumento da produção de leite, que passou de 16 bilhões de litros nos anos 90 para 27 bilhões de litros em 2008, atingindo a auto-suficiência. Fruto de um conjunto de políticas públicas para a agricultura familiar e da reforma agrária.
Outros países que desmantelaram suas políticas de regulação e que voltaram suas agriculturas apenas para o mercado externo estão em crise de abastecimento e inflação.
Mas não estamos completamente imunes a esses acontecimentos. Temos de preservar os avanços e evitar possíveis impactos negativos, como diminuição do poder de compra da população mais pobre, concentração e estrangeirização da terra, concentração ainda maior das cadeias de distribuição e priorização da exportação agrícola em detrimento do abastecimento interno.
A solução de longo prazo para garantir segurança alimentar e estabilização dos preços internos passa por um conjunto de medidas estruturais. É necessário garantir uma oferta suficiente de alimentos, e isso se faz fortalecendo ainda mais a agricultura familiar. Também se faz com reforma agrária, que distribui melhor a terra e garante que a terra seja usada para produção de alimentos, e não para especulação. E é isso que estamos buscando. Terra para quem quer trabalhar, produzindo alimentos com qualidade para garantir a soberania e a segurança alimentar de nosso país.


GUILHERME CASSEL , 51, engenheiro civil, é ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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