São Paulo, Sexta-feira, 04 de Junho de 1999
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Milonga desafinada

JOSÉ SARNEY

Nunca é demais explicitar o que se esconde atrás da proposta de dolarização. A primeira de todas é uma adesão de renúncia ao destino nacional. É a confissão do fracasso do país, incapaz de manter um dos mais importantes instrumentos de soberania: ter sua própria moeda. Algumas vezes mudamos o nome da moeda, faz parte das vicissitudes econômicas, mas não renunciamos a ter uma moeda. Nem no tempo da colonização as moedas nacionais desapareceram; conviviam com as da metrópole e tinham seus parâmetros de conversão.
Na América Latina, temos um país que não tem moeda, aliás tem o dólar como moeda. Será que Brasil e Argentina vão juntar-se ao Panamá, ser o Panamá do Sul?
A Europa, para não renunciar à sua identidade, ela que é prioridade de invasão da área do dólar e da universalização do inglês, resiste e cria uma moeda de reserva, o euro, que tem a finalidade de justamente ser o contrário da dolarização, uma outra opção que não o dólar.
A pregação da dolarização do Cone Sul é pedir o atrelamento total, incondicional, subserviente e impatriótico dos nossos países ao comando dos Estados Unidos. Em vez de parceiros, com a carga histórica de nossas identidades e convergências, relações maduras e altivas, teremos relações de dependência, sem condições de opinar nem ponderar.
Os que assim pensam têm uma visão imediatista, de um pragmatismo fugaz, sem a dimensão histórica de nossas nacionalidades. O objetivo qual é? O de fugir às turbulências de um mercado globalizado. Isso não é solução de Estado. É politicagem.
Perón, que não é autor do meu agrado, mas que tem o seu partido justicialista ainda no governo, na década de 50, premido por dificuldades, disse na Escola Militar de Buenos Aires: "Esses senhores de olhos verdes e cabelos ruivos disseram-me que, se eu adotasse sua linha, seria lembrado e glorificado no mundo civilizado". Respondeu: "Prefiro ser esquecido e ultrajado lá a ser "filho da p... em minha pátria!". Transcrevo com a linguagem chula que usou.
O governo atual argentino, não o povo, está com uma sedução imensa de concretizar aquilo que o chanceler Tella afirmou: "Relações carnais com os Estados Unidos", isto é, atrelamento político. Com o Brasil, relações econômicas. Ora, o que nós, povo latino-americano, desejamos é uma integração para a formação de um Mercado Comum, com políticas macroeconômicas conjuntas, representativas de nossas soberanias, e não a renúncia às nossas identidades. O Mercosul é esse sonho realizável. Fugir dele para entrar no guarda-chuva da Otan e ficar sob a proteção de Wall Street é sonho de exportador de vento, e não de estadistas dignos desse nome.
Será que o presidente Fernando Henrique desejaria passar à história como "o governo que teve a grandeza de fazer do dólar moeda brasileira"? Quem o conhece sabe que não. O Brasil não tem motivos para desacreditar no grande futuro, tampouco para julgar que a América Latina não tem direito de ser um grande espaço econômico e político. Somos a única área do planeta pronta para ter os anos dourados do século 21.
Isso não se faz com pessimismo, submissão e milongas desafinadas.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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