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São Paulo, sexta-feira, 04 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A cartola da intolerância

ALOIZIO MERCADANTE

A audiência que o presidente Lula concedeu ao MST gerou uma onda de intolerância conservadora. O pretexto foi o boné. As verdadeiras razões são tão comezinhas quanto antigas.
Em 1850, numa época em que, nos EUA, instituía-se o "Homestead Act", pelo qual se permitia a qualquer pessoa que assim desejasse ocupar e se apropriar das terras que fosse capaz de pôr em produção, no Brasil a nossa elite agrária punha em cena, com a Lei de Terras, o primeiro ato da contra-reforma que até hoje exclui do direito à propriedade milhões de trabalhadores brasileiros sem terra. Ao estabelecer a compra e a venda como mecanismos básicos para o acesso à propriedade fundiária, antecipando-se aos desdobramentos de uma possível libertação dos escravos, a oligarquia agrária de ontem, como faz o que resta de seus representantes de hoje, preservou seus privilégios à custa do atraso do desenvolvimento do país e da miséria de uma parte importante da população brasileira.
Não por acaso, somos um dos países mais desiguais do planeta, o segundo, de uma lista de 110 países, relacionada pelo Banco Mundial, em que mais de 64% da renda são apropriados pelos 20% mais ricos da população. Não por acaso, completados mais de quatro séculos e meio do processo de monopolização territorial e formação do latifúndio, o grau de concentração da propriedade agrária no país atinge ainda níveis extraordinariamente elevados, como ilustra o fato de que apenas 37 megaestabelecimentos ocupem uma área maior do que as 2.518.628 unidades com menos de 10 hectares.
A reforma agrária é, nesse contexto, uma dimensão estratégica do combate à pobreza e à desigualdade social. Ela é fundamental para, no curto prazo, expandir as oportunidades de emprego na agricultura, reduzindo os fluxos migratórios para as áreas urbanas, e assegurar condições mínimas de segurança alimentar a milhares de famílias que não dispõem de terras para trabalhar. Ela é decisiva, no médio prazo, para consolidar a agricultura familiar e desenvolver a economia solidária no campo, que são essenciais para assegurar o abastecimento de alimentos básicos, necessários à erradicação da fome, e atingir um nível adequado de homogeneização social nas áreas rurais. É, portanto, uma reforma que interessa a toda a sociedade brasileira, e não apenas aos movimentos sociais que lutam por ela.


O governo do presidente Lula tem um compromisso histórico de levar adiante a reforma agrária no Brasil


O governo do presidente Lula tem um compromisso histórico, reafirmado durante a campanha eleitoral, de levar adiante a reforma agrária no Brasil, como parte do processo de desenvolvimento e inclusão social que é o eixo do seu programa de governo. Levá-la adiante dentro dos princípios da Constituição e da lei, de forma pacífica e negociada, como é a marca deste governo.
Nunca um governo federal dispensou um tratamento tão adequado aos pequenos produtores na história recente do país. No último mês, o Congresso aprovou as regras para a renegociação das dívidas dos assentados da reforma agrária e dos agricultores familiares, beneficiando mais de 825 mil famílias. Aprovou, também, o Programa de Aquisição de Alimentos produzidos por esse segmento produtivo, bem como a instituição do Benefício-Safra para o semi-árido. Junto com as medidas aprovadas pelo Parlamento, no último dia 24 de junho, o presidente Lula anunciou a disponibilização de R$ 5,4 bilhões para o financiamento da agricultura familiar.
A reforma agrária, como todo processo de mudança social, gera tensões. Isso é da natureza desse processo. Também é natural que os movimentos sociais interessados na reforma lutem por ela e apresentem suas reivindicações. Faz parte do jogo democrático, ainda que, para alguns que se dizem democratas, o único jogo permitido seja o que favorece seus interesses e privilégios.
O que não é admissível é o desrespeito à lei. Alguns segmentos do movimento social têm cometido excessos que não são aceitáveis dentro de um processo democrático de reforma. Tampouco é aceitável que organizações dominadas por grandes proprietários, ou segmentos desses proprietários, façam apologia da violência e criem grupos armados ilegais. O governo do presidente Lula não tolerará esse tipo de comportamento. As tensões e os conflitos têm que ser solucionados pela via da negociação, do diálogo democrático, da participação pluralista e do irrestrito respeito à lei.
Essa perspectiva vai ao encontro do que tem sido a marca do comportamento do presidente Lula ao longo de toda a sua trajetória política e, especialmente, no exercício da Presidência da República. O rechaço a toda forma de discriminação e preconceito, a contínua dedicação à construção de uma sociedade plural e mais justa e a grande capacidade de negociação são traços distintivos da personalidade e da história do nosso presidente. Talvez por isso, em todas as solenidades de que participou, sempre tenha recebido com carinho e reconhecimento as homenagens prestadas.
Também por isso, trouxe ao Palácio do Planalto o debate com os movimentos sociais, como forma de reforçar simbolicamente a institucionalidade democrática e a determinação do governo para o diálogo e a negociação como meios de encaminhamento de soluções concretas aos problemas do povo brasileiro. Essa é a cabeça do presidente, independentemente do que os cartolas digam do boné que eventualmente use.

Aloizio Mercadante, 49, economista, professor licenciado da PUC e da Unicamp, é o líder do governo no Senado Federal.


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