São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula e os desafios do Mercosul

RICARDO SEITENFUS

Florão do governo Lula, a política internacional brasileira vê chegar a "hora da verdade" no espinhoso âmbito da integração latino-americana. Ao exercer a presidência "pro tempore" do Mercado Comum do Sul (Mercosul), o Brasil estará à testa das reuniões de todas as instituições do bloco durante o segundo semestre de 2004. Trata-se da grande oportunidade, durante o mandato presidencial, de fazer do Mercosul um elemento estrutural da vida brasileira, legando às gerações futuras uma inédita vitória diante da autofágica incapacidade do Sul de construir uma vontade coletiva.
Vítima da obsessão pelos temas comerciais, que erroneamente reduz a integração econômica ao desagravamento tarifário, o Mercosul deixou que as crises políticas e econômicas consumissem sua credibilidade em meio a incontáveis avanços e recuos. Se é bem verdade que um mercado comum perfeito ainda está distante, também se deve reconhecer que há uma diferença substancial entre um futuro projeto inacabado e a atual ausência de projeto.
Integração econômica se faz com medidas de médio e longo prazo. É preciso começar imediatamente para ter um mercado comum dentro de 15 anos, o que só será possível se a sociedade brasileira em seu conjunto convencer-se da irreversibilidade do projeto. Estrategicamente, não há nada melhor para o Brasil novo, que não se dilui, mas sim se agiganta com a perspectiva continental que se lhe oferece.
Antes de mais nada, Lula precisa se convencer de que integração é tema de Estado e de sociedade, não monopólio da diplomacia. O presidente deve incluir o Mercosul na lista de prioridades de todos os ministérios, combatendo assim a tendência das complexas estruturas governamentais de se concentrar na resolução de crises políticas pontuais ("apagar incêndios", no jargão do meio) em detrimento da elaboração e da implementação de projetos. É difícil praticar atos duradouros, seja porque a energia acaba consumida na dispersão dos esforços, seja porque a heterogeneidade da composição das bases governamentais dificulta os consensos mais maduros.
Ora, num Mercosul em que a conjuntura está ganhando de goleada da estrutura, muitas vezes negocia-se o que jamais poderia ser objeto de barganha, condicionando o que é incondicional.


O Brasil precisa evitar que grupos de dinossauros desconfiados comprometam projetos estruturais decisivos
O Brasil agora tem a chance de passar de bombeiro a arquiteto. Numa metáfora tranqüila, o traço de Brasília poderia agora delinear um belo horizonte coletivo -a propósito, a cúpula presidencial de dezembro ocorrerá em Minas Gerais. Nela, o governo brasileiro deve enterrar o Protocolo de Ouro Preto e erigir uma nova estrutura institucional. É preciso salvar o bloco do jugo de burocracias nacionais anacrônicas, lançando luzes sobre um processo decisório quase secreto, responsável por normas jurídicas constrangedoras, além de quilos de papel contendo decisões que nunca chegam a ser aplicadas.
O Brasil deve exigir que os primeiros escalões das diferentes pastas de governo dos quatro países se façam presentes à mesa de negociações, combatendo a notória irrelevância que faz do bloco um "Mercosul sem dentes", na feliz expressão de Félix Peña. As reuniões de ministros devem ser remodeladas e prestigiadas, fazendo com que "pequenas diplomacias" dêem lugar a grandes políticas. O Brasil precisa evitar que grupos de dinossauros desconfiados comprometam projetos estruturais decisivos como, por exemplo, a transformação da Secretaria do Mercosul em órgão técnico. É imprescindível a afirmação de um ator independente e especializado, depositário de uma perspectiva comum, que ponha fim à era da improvisação.
Salta aos olhos também o fato de que o esquizofrênico e caríssimo sistema de reuniões periódicas em quatro capitais distintas impede o mundo político e os cidadãos de responderem a questões como "a quem devo me dirigi quando necessito de uma decisão do Mercosul?". "Como acompanhar as negociações e sobre elas opinar?" É urgente construir uma verdadeira organização internacional, capaz de dar transparência ao processo e continuidade às iniciativas coletivas.
A sociedade civil, em seus diferentes foros e redes que têm como âmbito o Mercosul, já produziu centenas de textos e propostas ignorados ou desperdiçados pelo hermetismo dos órgãos decisórios do bloco. Há neles riquíssimas estratégias comuns, sobretudo em temas não-comerciais, que podem fazer da integração uma realidade benéfica à cidadania, promovendo a convicção cultural irreversível de que somos filhos do mesmo continente.
Liderança constrói-se com capacidade de convencer e motivar os sócios, mas também pelo exemplo. Que o Brasil novo chegue finalmente ao Mercosul.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 56, é professor titular de direito internacional público e de organizações internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (RS) e diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria.


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