UOL




São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A eutanásia deveria ser legalizada?

NÃO

Dizer adeus à vida com dignidade

LÉO PESSINI

Buscamos incansavelmente a felicidade de viver muito tempo com dignidade, e não apenas sobreviver. Fazemos de tudo para combater a doença, a dor, o sofrimento e vencer a própria morte. Estamos cada vez mais aparelhados pelas inovações tecnológicas nessa empreitada. Num lance de "ilusão utópica", podemos até, estrategicamente, negar a realidade do morrer como não fazendo parte de nosso existir e agir como se fôssemos imortais em nossa existência terrena. Pura insensatez, porque morremos e clamamos por dignidade nesse momento.
Ouvimos frequentemente, de doentes em fase terminal, que eles não têm tanto medo de morrer, mas sim de sofrer. O que se teme é o processo marcado pela dependência e dor não aliviada que se associa à doença. Enquanto a dor física é a fonte mais comum do sofrimento, o sofrimento ligado ao morrer vai além do mero nível físico, atingindo o todo da pessoa. Para eliminar a dor ou pelo menos aliviá-la, exigem-se medicamentos analgésicos; para cuidar do sofrimento é necessário um horizonte de significado e sentido, em que os valores socioculturais e religiosos são fundamentais.
Ao negligenciar a distinção entre dor e sofrimento, a tendência dos tratamentos é se concentrar somente nos sintomas físicos, como se estes fossem a única fonte de desconforto. Essa perspectiva permite continuar agressivamente tratamentos fúteis, na crença de que, enquanto o tratamento protege da dor física, ele protegeria também de todos os outros aspectos, ignorando que o sofrimento tem de ser cuidado nas suas várias dimensões -física, psíquica, social e espiritual.
Pede-se para morrer e ser ajudado para tal, por causa da dor e do sofrimento sem perspectivas e da "vida diminuída", sem perspectiva de futuro. Busca-se como saída a legalização da eutanásia, a qual somos contra, mas não podemos ignorar que a questão precisa ser estudada e debatida.
Olhando para nossa realidade, o desafio maior é considerar a dignidade no adeus à vida, para além da dimensão biológica, no contexto médico-hospitalar, ampliando o horizonte, integrando a dimensão sociopolítica relacional.
Somos emocionalmente envolvidos por casos dramáticos divulgados pela mídia, que anunciam o direito de todo ser humano a ter uma morte feliz, sem dor, em paz. Este não deixa de ser um ideal a ser nobremente atingido. Perguntamo-nos qual o significado de tudo isso, diante da morte de milhares de seres humanos por acidentes, violência e péssimas condições de vida.
Existe muito o que fazer no sentido de levar a sociedade a compreender que o morrer com dignidade é uma decorrência do viver dignamente. Se não se tem condição de vida digna, no fim do processo garantiríamos uma morte digna? Antes de existir um direito à "morte humana", há que garantir um direito a uma "vida humana", e não somente sobrevivência sofrida. É chocante e até irônico constatar situações em que a mesma sociedade que negou o pão para o ser humano viver oferece-lhe a mais alta tecnologia para "bem morrer".
Não somos doentes nem vítimas da morte. É saudável sermos peregrinos. Não podemos aceitar passivamente a morte que é consequência do descaso pela vida, causada pela violência, por acidentes e pobreza. Em face dessa realidade, é necessário cultivar uma santa indignação ética e um compromisso com a vida vulnerável. Podemos ser curados de uma doença classificada como mortal, mas não de nossa mortalidade e finitude humanas. Essa condição de existir não é uma patologia! Quando esquecemos isso, acabamos caindo na tecnolatria e na absolutização da vida biológica pura e simplesmente.
Insensatamente, procuramos a cura da morte e não sabemos mais o que fazer com os pacientes fora de possibilidades terapêuticas. Instala-se então a distanásia, adiando a morte inevitável, em que os instrumentos de cura facilmente se transformam em ferramentas de tortura! Entre dois limites opostos, de um lado a convicção profunda de não abreviar intencionalmente a vida (eutanásia), de outro, a visão para não prolongar o sofrimento e adiar a morte (distanásia). Entre o não abreviar e o não prolongar está o desafio de cuidar do sofrimento.
Como fomos cuidados para nascer, precisamos também ser cuidados para morrer. A vida humana, no seu início, bem como no final, é total vulnerabilidade, que nos convoca ao cuidado máximo. Aqui a palavra de ordem é solidariedade, que não é paternalismo. Cicely Saunders, fundadora da moderna filosofia de cuidados paliativos, diz que "o sofrimento humano somente é intolerável quando ninguém cuida".
Pergunto-me humildemente, sem ter resposta, por que, no caso Vincent Humbert, todas as expressões de cuidado, até de sua própria mãe, por desejo próprio o levaram à morte, e não a continuar a viver ressignificando sua vida.


Léo Pessini, 48, padre camiliano, professor doutor em bioética no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética do Centro Universitário São Camilo, é membro do Board da International Association of Bioethics e autor de "Distanásia: até quando prolongar a vida" (ed. Loyola, 2002).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
A eutanásia deveria ser legalizada?
Sim - Volnei Garrafa: A discussão precisa avançar no Brasil

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.