São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2008

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GUSTAVO FRANCO

Maldades contra Machado

ENTRE OS TERRÍVEIS efeitos da crise econômica global está o de prejudicar as festividades relativas ao centenário da morte de Machado de Assis, ocorrido na segunda-feira 29 de setembro, quando os mercados desabaram no mundo inteiro.
Não é a primeira vez, nem a segunda, que Machado de Assis se vê atropelado pelos eventos da economia.
A primeira humilhação mais fundamental teve a ver com o patrimônio que deixou para seus herdeiros. Em julho de 1898, temendo por sua saúde, escreveu um testamento, deixando para Carolina, sua esposa, entre outros bens, 7.000 contos em títulos da dívida pública do empréstimo nacional de 1895. Esses títulos entraram em moratória pouco antes da data desse testamento.
Em 1906, com a morte de Carolina, Machado escreveu um novo testamento, declarando possuir não mais 7, mas 12 apólices do empréstimo de 1895, ou seja, as sete originais mais títulos novos que recebeu pelos juros e principal não pagos.
A moratória perdurou até 1910, quando a nova herdeira, a menina Laura, filha de sua sobrinha, começou a receber juros. Em 1914, uma nova moratória interrompe os pagamentos até 1927, e novamente em 1931. Depois de alguns pagamentos em 1934, veio um "calote" completo em 1937. Nos 40 anos entre 1895 e 1935, menos de 18% do empréstimo foi amortizado, e os juros foram pagos apenas em 12 anos.
O Estado a que Machado serviu e honrou ao longo de sua vida devastou-lhe a herança, a pecuniária ao menos, com essa sucessão de "calotes". E, a partir de 1943, quando os pagamentos foram retomados, a inflação funcionou como uma crueldade superveniente, pois os títulos não tinham correção monetária.
Como se não bastasse a desfeita, ou para tentar uma compensação, em 1987, resolvemos homenagear Machado de Assis em uma cédula de mil cruzados. A cédula foi colocada em circulação em 29 de setembro de 1987, exatos 79 anos da morte do escritor, e nesse dia valia pouco menos de US$ 20.
Em 16 de janeiro de 1989, em conseqüência do Plano Verão e da mudança do padrão monetário, Machado recebe um vergonhoso carimbo triangular cortando-lhe três zeros: a cédula agora correspondia a um cruzado novo, que nascia valendo cerca de US$ 1, conforme a cotação oficial. No "paralelo" valia bem menos.
Em 31 de outubro de 1990, depois de três anos de militância, a cédula com Machado deixa de circular por valer menos de um centavo de dólar.
Só se pode imaginar o que Machado diria disso tudo

gh.franco@uol.com.br


GUSTAVO FRANCO escreve aos sábados nesta coluna.



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