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São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Em defesa de "Bandeira Branca" na Bienal

AGNALDO FARIAS e MOACIR DOS ANJOS


"Bandeira Branca" sustenta, a partir de seu irredutível incômodo, uma necessária contraposição à lógica solar do nosso desenvolvimentismo

Passadas algumas semanas da abertura da Bienal, enfrentando o arco surpreendemente irisado de opiniões sobre algumas obras expostas, especialmente a instalação "Bandeira branca", de Nuno Ramos, alvo de agressões delirantes, é necessário esclarecer a importância da presença dessa obra no centro nervoso do prédio de Niemeyer.
Dedicamos a 29ª Bienal de São Paulo ao binômio arte e política porque não se pode mais permitir que o exercício político se limite ao âmbito das representações partidárias. Tomamos seu nome de um verso sinfônico de Jorge de Lima -"Há sempre um copo de mar para um homem navegar"- para deixar claro que a palavra poética é o nervo do nosso projeto.
Se a linguagem atravessa nossos corpos, colocando-nos em relação uns com os outros, incitando-nos à prática da política e ao entrechoque de diferenças, é preciso ter em mente que a poesia é a seiva da linguagem, que brota de território selvagem que artistas ousam explorar, ao recusarem o já contabilizado e mostrarem o que não conhecíamos.
Daí o estranhamento, a repulsa, o choque. Não é por outro motivo que a história da arte é pontuada por escândalos e incompreensões.
Assim, a presença dos três urubus dentro dos limites da obra, mesmo que licenciados, aos cuidados de um veterinário especializado em aves de rapina, muito bem alimentados e hidratados, em ambiente espaçoso e cumprindo com folga todas as condições de cativeiro em que foram criados, logrou inaceitável para a opinião pública, a ponto de os mesmos serem retirados da mostra.
"Bandeira Branca" sustenta, a partir de seu irredutível incômodo, uma necessária contraposição à lógica solar que moveu o nosso desenvolvimentismo, manifesta no vão central do prédio, onde a arquitetura de Niemeyer canta mais alto, fazendo vibrar em margens sinuosas as bordas das lajes, como a sacudir o otimismo do modernismo arquitetônico brasileiro, esparramando-o pela cidade.
A poética de Nuno Ramos é da ordem das visões urbanas de Oswaldo Goeldi, das ruas noturnas e vazias esbofeteadas por vento e medo; da amarga constatação de Drummond -"Em verdade temos o medo, nascemos escuro"-, da melancolia dos nossos sambas.
Era preciso que no vão do prédio a temperatura caísse alguns graus, que a promessa de entretenimento fosse travada pela presença de edifícios calcinados, monumentos semelhantes a chaminés de fábricas mortas, encimados por músicas e aves soturnas, para que o esforço de celebração da política se fizesse mais forte.
Pois o brasileiro, a despeito da alegria divulgada pela mídia, da histeria cultivada pelos departamentos de marketing, é também um bocado triste. E não é mal que seja assim. Sejamos alegres, mas nem por isso percamos a capacidade de criticar.
Embora vítima de leituras incapazes de ir além do mais superficial entendimento (ou simplesmente do desinteresse em entendê-la de fato), a obra de Nuno Ramos expõe de modo agudo e bruto, por meio da própria ausência dos urubus, aquilo que ele antes somente simbolizava: a existência de um Brasil que se fecha à escuta e que rejeita a conversa com o outro.


AGNALDO FARIAS e MOACIR DOS ANJOS são curadores-chefes da 29º Bienal de São Paulo.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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