São Paulo, segunda-feira, 05 de janeiro de 2004

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VINICIUS TORRES FREIRE

Todo mundo gosta de pobre

SÃO PAULO - Parece que jamais o cinema nacional ganhou tanto dinheiro tratando de pobres como agora. Agora, toda a gente parece ter uma ONG para dar dinheiro, latinhas usadas, curso de "empreendedorismo", tambores ou professores de arte para os pobres (o que vão fazer da vida tantos pobres artistas e músicos? Trilha musical para arrastão? Bonequinhos de barro das enchentes?).
A maioria das grandes empresas trata de "responsabilidade social" e de "cidadania". O presidente, ex-pobre e ainda pobre de espírito, ama os pobres como filhos, como declarou em um de seus milhares de discursos tediosos e irrelevantes.
Jamais amamos tanto os pobres, e eles estão onde sempre estiveram, humilhados e ofendidos, os párias mais párias do planeta, afora uns quatro buracos do inferno sobre a Terra, uns países da África. Seria isso que Cristo teria querido dizer a Judas naquela passagem esquisita do Evangelho de João, "pois sempre tereis os pobres convosco": uma profecia sobre o Brasil da "responsabilidade social"?
Afora a piada cínica, não é estranha essa efusão de amor do pauperismo? No neocinema nacional, o pobre aparece engraçado, como se figura de cordel e/ou de circo, memórias mais ou menos edulcoradas de zés-ninguéns com quem os diretores de cinema, rapazes de classe média bacana, conviveram em viagens juvenis pelo Nordeste (antes, os pobres eram algo mais feios, sujos e/ou malvados). Os rappers vivem na MTV. Alguns trejeitos, gírias e trapos ("streetfashion") são imitados por meninos de classe média. Mas os pobres continuam a não falar por eles mesmos, ou falam, mas como bobos da corte.
Há tanta perua "cidadã" plena de "responsabilidade social". Tanta moçada que, na ressaca do esquerdismo e do catolicismo, derivou para o onguismo de resultado "social". Mas título de propriedade do barraco na favela, água e banheiros limpos, escola que preste, poder de fato, o que antigamente se chamava de cidadania no sentido correto do termo, isso não tem, não, senhor. Nem mais política para isso tem, se é que já houve.



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