São Paulo, quinta-feira, 05 de janeiro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Além das eleições

FÁBIO KONDER COMPARATO

Raramente enfrentamos um novo ano com uma sensação tão deprimente de aprofundamento na mediocridade quanto agora. Abrimos quotidianamente os jornais ou assistimos aos programas televisivos de notícias para topar, todo santo dia, com as figuras de possíveis candidatos à Presidência da República, todos se apresentando como atores de uma nova espécie de teatro do absurdo. Será possível que ainda haja alguém capaz de acreditar que a próxima rodada eleitoral trará solução a algum problema importante de nosso país?


Ainda há alguém capaz de crer que as próximas eleições trarão solução para algum problema importante de nosso país?


Para mal dos nossos pecados, que devem ser numerosos e todos mortais, temos ainda de ingerir em 2006 uma dose maciça de futebol, o moderno ópio do povo, com a realização de mais uma Copa do Mundo. Para se consolar do desemprego em massa e da redução em um terço do salário médio nos últimos dez anos, a classe trabalhadora se inebria com as façanhas de nossos craques.
Não nos deixemos, porém, abater diante dessa perspectiva de um precoce envelhecimento nacional. Enfrentemos, antes, o problema com o método criado pela antiga Ação Católica e, agora, adotado pelas várias escolas de governo existentes no país: ver, julgar e agir.
Antes de tudo, é preciso fazer o levantamento, tão completo e acurado quanto possível, da realidade nacional, destacando sem contemplações os seus elementos mais críticos.
Em seguida, importa identificar quais são as causas determinantes do estado de regressivo subdesenvolvimento em que temos vivido no último quarto de século.
Com base no diagnóstico assim realizado, estaremos habilitados a formular um programa de ação, ou seja, elaborar um projeto nacional de desenvolvimento nas suas três dimensões essenciais -política, econômica e social- à luz da realidade internacional de hoje.
Ora, dessas três dimensões, a principal é, sem sombra de dúvida, a política, pois ela comanda todas as demais.
Importa reconhecer, de uma vez por todas, que nada poderá ser feito para estancar o processo de prematura senilidade que se abateu sobre a nação nos últimos 25 anos sem introduzir profundas mudanças na organização do nosso regime político.
Tais mudanças, de natureza interdependente, são principalmente duas: a instauração de um progressivo sistema de democracia direta, de um lado, e a reorganização do sistema federal e da estrutura dos poderes públicos, de outro lado.
Quanto à democracia direta, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) tem assumido um papel pioneiro ao tomar a iniciativa de apresentar, não só no Congresso Nacional mas também em sete Estados e em mais de uma dezena de municípios em todo o país, projetos de lei destinados a facilitar a realização de plebiscitos e referendos e a reforçar a iniciativa popular, tanto de leis quanto de emendas constitucionais e alterações de leis orgânicas municipais.
Além disso, dentro da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, lançada pela OAB, os senadores Pedro Simon (PMDB-RS) e Eduardo Suplicy (PT-SP) lideram uma proposta de emenda constitucional que institui o "recall", ou revogação popular de mandatos eletivos, no Executivo e nas diversas Casas Legislativas.
A segunda medida de reforma política em profundidade é a reformulação do nosso federalismo, que deverá perfazer-se em dois campos.
Em primeiro lugar, com reagrupamento de Estados e municípios em regiões geoeconômicas e áreas metropolitanas autônomas.
Em segundo lugar, pela criação, em todas as unidades da federação, de um novo poder, autônomo em relação ao Executivo, dotado de competência própria de programação de políticas públicas e planejamento, com a participação deliberativa dos mais diferentes setores da sociedade civil.
Tais planos e programas de políticas públicas, uma vez aprovados pelo órgão Legislativo, passariam a ser de realização obrigatória pelos governos das respectivas unidades federativas.
A partir daí, estará levantado o principal obstáculo para que se ponha em prática um programa a longo prazo de crescimento econômico auto-sustentado com preservação do meio ambiente, dando início, concomitantemente, a um processo de redução continuada das desigualdades sociais e regionais.
Quem sabe, se os fados nos ajudarem, seremos capazes de reunir, no ano que se inicia, um grupo expressivo de entidades da sociedade civil para pensar o futuro de nosso país, muito além da conjuntura eleitoral.

Fábio Konder Comparato, 69, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro honorário e vitalício do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). É autor, entre outras obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos".


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