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Os filhos da gripe
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - O Carnaval é uma
festa alegre ou triste? A começar pela
expressão "folia de Momo", ou, pior
ainda, pelo "tríduo momesco", acho
que é uma festa que tenta ser alegre
para os tristes.
É o reconhecimento de que o ano foi
reprimido. Daí a idéia dos três dias em
que, teoricamente, vale tudo. Ou valia,
porque a festa ficou de tal modo encapsulada nos desfiles das escolas de
samba que quem não desfila acaba
torcedor ou entediado.
Mário Filho falava do Carnaval de
1919. O Rio fora assolado pela gripe espanhola, o sujeito começava a atravessar a rua com saúde e chegava
morto na outra calçada.
As carroças de lixo recolhiam os corpos, que eram jogados numa vala
aberta para a emergência. Um presidente da República morreu de espanhola.
Pois o Carnaval de 1919 comemorou
o fim da gripe e foi uma depravação
total. A polícia registrou milhares de
defloramentos. Todos queriam vingar
a carne castigada pela perspectiva da
morte. Houve uma geração de "filhos
da gripe", meu primo Torquato foi um
deles.
Tivemos há pouco um surto de gripe,
mas nada parecido com a espanhola.
Que, por sinal, tornou-se fantasia comum das moças, que tinham para escolher a odalisca, a greco-romana, a
cigana e, a mais sem graça de todas, a
baianinha (as outras deixavam as
pernas de fora, o que era uma atração
suplementar).
Com o advento dos antibióticos (para curar a gripe) e do fio-dental (que
mostra mais do que as pernas das moças), o Carnaval perdeu suas peças de
sustentação.
Ficou chata, uma alegria fabricada,
postiça como uma dentadura, encomendada como uma missa. Minha
emoção é esperar pelo julgamento das
escolas de samba. E ver dona Neuma e
dona Zica na TV, revirando os olhos e
dizendo ""Ai meu Deus!" a cada nota
dez que sai para a Mangueira.
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