São Paulo, sexta-feira, 05 de março de 2004

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JOSÉ SARNEY

Annus terribilis

Os antigos e os poetas épicos falam na "roda da fortuna" para marcar tempos bons alternados com os maus. Já a nossa rainha da Inglaterra, Elizabeth 2ª, que os da nossa geração conhecemos mocinha, ao lado do pai, o rei Jorge 6º, nas fotografias da Segunda Guerra Mundial, preferiu a expressão latina "annus terribilis" quando acossada pelo fogo entrincheirado dos tablóides londrinos, que revelavam histórias escandalosas da família real, tendo à frente os amores de Lady Di e seu marido, o herdeiro do trono, Charles, sem falar nas noras de topless que brilhavam, não pelo que mostravam, mas mais pelo que demonstravam.
No Brasil, nós, que não abandonamos nossas convicções astrológicas, preferimos o "inferno astral". Ainda bem que o topless do Waldomiro foi na cabeça, colocada à mostra por um vídeo, desses de gravação escondida, tão populares nas pegadinhas dos programas domingueiros de TV.
No Nordeste, há uma crença de que "notícia ruim vem a cavalo", coisa do tempo em que a solução eqüestre era a mais rápida. Hoje, talvez melhor fosse "a jato". É da crendice popular dizer que essas coisas más não vêm só, mas em magote.
É o que estamos vivendo, ou melhor, voando em nuvens carregadas, dessas que a meteorologia diz causadoras de chuvas e trovoadas.
Li, há pouco, em Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia que foi chefe da assessoria de Clinton, que, a cada recessão, sucede um período de crescimento e este sempre tem pela frente um período de depressão. Assim, concluímos que as leis da economia não são diferentes das da vida e que estas sucessões entre tempos ruins e tempos bons fazem parte de tudo. Os chineses, com sua sabedoria milenar, condicionaram-se a pensar num sistema de antagonismos e contradições, o yin e o yang, o dia e a noite, a luz e a escuridão, o Sol e a Lua, o belo e o feio -e aí vai.
Na política, é a mesma coisa. O perde e o ganha, a popularidade e o esquecimento. Oposição e governo, exercidas sempre em alternância, vítimas do pecado da incoerência.
É o que se vê no atual e saudável debate democrático. Comissão faz, não faz, e o essencial e o racional, às vezes, se perdem na paixão e na esgrima do entrechoque dos partidos.
O ano não vem com ares otimistas. Aqui e lá fora. As estatísticas -sempre as estatísticas- nos dizem que as taxas de desemprego sobem, que os carros aproveitaram o ano bissexto para aumentar de preço mais do que no ano passado, que os cheques sem fundo batem recorde -e já anunciam até que os ovos de páscoa vão ficar mais caros. Tragédia!
Para aliviar, a Ambev, a cervejaria brasileira responsável por aquela loira da praia que é feita de malte, nos enche de orgulho nacionalista em ser a primeira global brasileira que vai dar porre no mundo.
Mas notícia atravessada mesmo é a de que o nosso PIB foi negativo em 2003. Sem desenvolvimento, tudo se complica. Diziam que a década de 80 fora a década perdida. A década de 90 foi a desgraçada. Até hoje, os números de crescimento de 1985 a 1989 não se repetiram: àquela época, o Brasil cresceu 5% ao ano; na década seguinte, a escalada da recessão veio crescendo até os números de agora, cuja origem está nesse tempo.
Afastemos o "annus terribilis" e o "inferno astral" e acionemos os terreiros da Bahia.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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