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RUY CASTRO
Proibido não ser perfeito
RIO DE JANEIRO - No sábado último, em belo artigo, o Caderno 2 do
"Estado" anunciou "A morte da voz
humana". Nenhum exagero no título. O Auto-Tune -o software que
"corrige" a afinação dos cantores-
está criando padrões de perfeição
inatingíveis para humanos, oferecendo a recompensa sem esforço e
tornando dispensáveis a vocação, o
talento e o mérito na música popular. "É como se Ronaldinho Gaúcho
usasse uma chuteira que acertasse
o gol por si. Treinar pra quê?", pergunta o autor.
O grito foi dado por quem tem toda autoridade para fazê-lo: João
Marcello Bôscoli, 40 anos, músico,
produtor e diretor de gravadora.
Como se não bastasse, filho de Elis
Regina e do compositor Ronaldo
Bôscoli, um dos criadores da bossa
nova, e que teve como padrasto o
pianista César Camargo Mariano,
com quem Elis se casou ao se separar de Bôscoli. Nunca houve gente
mais exigente em música.
Para João Marcello, pior até do
que dar afinação a quem não tem, o
Auto-Tune está fazendo com a voz o
que o Photoshop fez com a pele humana. Assim como o Photoshop
"gerou um padrão estético onde
poros, rugas de expressão, pelos e
outras características se tornaram
defeitos", o Auto-Tune passa o rodo
e "corrige" tudo o que considera
imperfeito no cantor: afinação, respiração, pausas, volume, alcance
-sem se importar se pertencem à
sua expressão e emoção.
Ele vai mais longe: "Hoje em dia
tomamos remédio quando sentimos tristeza, comemos lixo pré-mastigado quando temos fome, dopamos as crianças quando estão
agitadas, passamos horas no computador quando nossa vida parece
desinteressante" etc. -e "usamos
softwares de afinação quando temos um cantor desafinado".
O filho da cantora mais afinada
do Brasil defende os desafinados
no que eles têm de mais precioso:
sua falível condição humana, essencial à obra de arte.
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