São Paulo, segunda-feira, 05 de agosto de 2002

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Absurdos e atrocidades

MÁRCIA FERNANDES SEMER e ANTONIO MAFFEZOLI


A democracia exige controle das emoções pela razão e a sociedade deve suportar limitações ao punir

Na democracia não há poder exercido sem visibilidade. O Judiciário está incorporado à vida democrática do país, e imprensa e sociedade devem ter liberdade para discutir suas decisões. Mas é preciso cautela para que, explorando um sentimento coletivo de insegurança ou defendendo interesses privados, a independência de julgar não seja vilipendiada.
É preocupante o alarde sobre a sentença do caso Olivetto. Muitos fazem crer que a decisão que condenou os sequestradores aplica teses que destoam do direito, absurdas ou que comprometem a Justiça penal. Jogam deliberadamente a torcida contra o juiz. Os parâmetros aplicados na sentença, contudo, são comuns na Justiça criminal brasileira, ainda que nem sempre unânimes. Vários dos que fazem coro contra a sentença sabem disso e o ocultam do público por interesse ou oportunismo.
Vejamos o caso da absolvição por formação de quadrilha. Há quase consenso na doutrina que é necessário que a associação vise a prática de vários crimes. Assim ensinam Magalhães Noronha ("O desígnio de praticar apenas um não daria a tonalidade necessária ao delito") e Nelson Hungria ("Reunião estável ou permanente para o fim de perpetração de uma indeterminada série de crimes"), dois de nossos principais doutrinadores.
A advogada da vítima, neste mesmo espaço ("Tendências/Debates", 24/7), afirma singelamente que o argumento não se sustenta. Como se fosse estranho ao direito. Existe uma diferença entre o sentimento de justiça da vítima e a técnica de uma sentença penal, o que nem sempre é confortável, mas é o preço da democracia.
Aí, a mais importante e democrática técnica é a tipicidade. A conduta do criminoso deve estar de acordo com as palavras da lei que descreve o crime. O juiz não pode usar em sua sentença o que a lei não diz.
A acusação por tortura mostrou-se dissociada das hipóteses da lei. A opinião pública deve ser esclarecida de que não há decisões conhecidas que tenham aplicado a tortura na interpretação sugerida pelo promotor. Seria interessante que se apurasse quantas vezes nesse período de cinco anos da Lei de Tortura promotores denunciaram o constrangimento das vítimas de sequestros longos como crime autônomo. Os operadores de direito bem sabem, pela experiência, que o incomum, aqui, foi a acusação, não a sentença.
As agressões a presos como forma de punir ou exigir confissão não vêm merecendo dos promotores o mesmo zelo. São irrisórias as denúncias por tortura. A lei, surgida para evitar os excessos ilícitos da repressão penal, tem aplicação pífia no país, segundo a ONU. É triste perceber como a qualidade da vítima ou a atenção da mídia têm condições de alterar acusações.
A tipicidade penal é conquista irrenunciável da civilização. A democracia exige controle das emoções pela razão e a sociedade deve suportar limitações ao punir para preservar a tipicidade penal, que nos salva de penas impostas por critérios pessoais do juiz, ou motivadas pela síndrome de Barrabás, quando o julgador permite que emoções descontroladas e ressentimentos coletivos tomem o seu lugar.
Entendimentos dissonantes integram a independência do julgar. É o caso da inconstitucionalidade da proibição de progressão de regime em crimes hediondos, assentada na sentença e já defendida por ministros do STF e do STJ e por renomados juristas, como o desembargador Alberto Silva Franco, autor da mais importante obra jurídica sobre o tema.
A indignação moral e o sentimento de justiça devem ser exercidos observando os princípios da razão democrática, que não expressa frieza de técnica desprovida de humanidade. É instrumento para que vivamos em sociedades mais humanas. Quando os deixamos de lado, recusamos também o sublime da idéia de sociedade e nos surpreendemos no estado de natureza, sem Estado e sem normas, afastando-nos -aí sim- do humano, porque nos transformamos todos em vingadores privados, impondo-nos reciprocamente dor e miséria.
As atrocidades praticadas contra as vítimas não autorizam os magistrados a deixar de aplicar as regras do direito penal civilizado. Assim, a altivez, coragem e dignidade da juíza devem ser louvadas.
Como disse Voltaire, "quem te faz acreditar em absurdos, te faz cometer atrocidades". Os sequestradores acreditam em absurdos e cometem atrocidades. Que a opinião pública, ao reagir a essas atrocidades, não seja levada a crer em absurdos.


Márcia Maria Barreta Fernandes Semer, 38, é procuradora do Estado de São Paulo. Foi chefe de gabinete da Procuradoria Geral do Estado (1995-2000). Antonio Maffezoli, 31, é secretário-geral do Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades do Estado de São Paulo (Sindiproesp) e membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).


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