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Gol contra do preconceito
MAURICIO MURAD
Camus disse que o melhor que havia aprendido sobre ética devia ao futebol. Este, mais do que um esporte,
é uma analogia da vida
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"A lei é uma forma mais ou menos hábil
de burlar a Justiça."
NESSE PENSAMENTO de Millôr
Fernandes, a ética para, "data
venia", argüir a sentença de
um juiz de direito na queixa-crime
apresentada na Justiça por Richarlyson, jogador do São Paulo, contra um
dirigente do Palmeiras que disse, pela
televisão, que o atleta era homossexual. O assunto sacudiu a galera nas
últimas semanas.
Diga-se logo que uma sentença deve observar pelo menos dois princípios fundamentais: legalidade e impessoalidade, bases para construir a
Justiça. A legalidade não foi respeitada, já que a decisão que arquivou o caso de Richarlyson fere a Constituição -como (quase) todo mundo sabe, ela
proíbe a discriminação. Além disso, a
sentença foi absolutamente pessoal,
homofóbica e intolerante.
No "tira-teima", vemos que o árbitro -ou melhor, o juiz de direito-
disse que, "se fosse homossexual",
bem, "nessa hipótese", para o jogador,
"melhor seria que abandonasse os
gramados". Uma peça rasa, de mau
gosto e pobre de argumentos.
Outro lance: "Trazer o episódio à
Justiça outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol". Isso sem falar na linguagem
convocada: "Cada um na sua área, cada macaco em seu galho, cada galo em
seu terreno, cada rei em seu baralho".
Atenção: a torcida sabe vaiar...
As regras do futebol supervisionadas pela International Board são 17.
Nenhuma permite a discriminação
por opção sexual. Aliás, uma das dimensões mais importantes do futebol, fator que ajuda a explicar sua planetária popularidade, é exatamente
esta: qualquer pessoa pode jogar -e
jogar bem- futebol, independentemente de classe, cor, tipo físico, opção
sexual ou gênero.
O nosso futebol feminino acaba de provar isso, com a brilhante conquista do ouro no Pan, o mesmo torneio
em que os rapazes pagaram o maior vexame. Países como Alemanha, Suécia e Estados Unidos já provaram a
"igualdade" do futebol.
Um dos maiores escritores da atualidade, Vargas Llosa, diz que o futebol
pode ser um exemplo, pois, nele, a
avaliação, em geral, obedece ao critério do mérito, e não a outro qualquer.
É uma lição que todos que têm a responsabilidade de tomar decisões deveriam preservar. E cartão vermelho
para quem não fizer o dever de casa.
Na Alemanha, pouco antes da Copa,
autoridades da alta magistratura do
país se reuniram para afirmar que o
futebol deveria ser uma prioridade,
um veículo de reeducação e assimilação de novos valores.
Na prática, foram mapeadas e controladas pela polícia e pela Justiça 142
associações neonazistas, racistas e xenófobas, as quais, entre outras práticas de violência, defendiam a agressão aos homossexuais.
Ao avaliar o resultado do mundial,
os alemães cantaram e dançaram no
Portão de Brandemburgo sob o lema:
"A Itália ganhou uma Copa; a Alemanha, uma alma". E essa "alma", diziam, é a de um país civilizado, tolerante, livre de preconceitos.
No Brasil, estima-se que existam
mais de mil grupos organizados que
defendem o direito dos homossexuais. Isso não é por acaso. A exclusão
é grande, sem dúvida. Mas a Justiça
não pode reproduzir o que há de mais
atrasado na sociedade. A luta desses
grupos têm impacto em toda a vida
social, já que a liberdade de uns ajuda
na liberdade de todos. O respeito é um
dos fundamentos da civilização.
O filósofo e escritor Camus, que foi
goleiro, afirmou que o melhor que havia aprendido sobre ética e bons costumes devia ao futebol. Este, mais do que um esporte, é uma analogia da vida -e, assim, é um grande tema para
as ciências humanas, inclusive para o
direito. O futebol é uma via de acesso
a temas de alto valor, como a inclusão
social e a igualdade de oportunidades.
Desconhecer isso é grave para uma
ocupação tão relevante quanto a de
um juiz; conhecer e não observar é
muito pior e condenável.
Rui Barbosa, expoente de nossa
cultura jurídica, era um entusiasta do
caráter educacional dos esportes.
Considerava-os o lugar do mérito e
dos ideais de igualdade. Por isso, os jovens precisavam de esporte, para que,
no futuro, melhorassem a sociedade.
Assim, poderíamos reduzir a nossa lamentável impunidade, fazer justiça
com letras maiúsculas e, quem sabe,
eliminar da vida brasileira uma de
suas angústias: "De tanto ver triunfar
as nulidades, de tanto ver crescer as
injustiças, de tanto ver agigantar-se o
poder nas mãos dos corruptos, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha
de ser honesto".
MAURICIO MURAD , 57, sociólogo, doutor em sociologia
do esporte, é professor da Uerj (Universidade do Estado
do Rio de Janeiro) e do mestrado da Universo. É autor, entre outras obras, de "A Violência e o Futebol, dos Estudos Clássicos aos Dias de Hoje".
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