São Paulo, terça-feira, 05 de outubro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Momento e missão

Propaga-se interpretação enganosa do momento atual. Essa abordagem está sediada em São Paulo. Ela é produto de convergência entre atitudes correntes no mundo e circunstâncias brasileiras.
O Brasil, segundo essa maneira de encarar a situação, amadurece. Descarta os devaneios da juventude: o sonho de caminhos diferentes. A realidade chegou na forma dos mercados e da globalização. Nada de caciquismo ou de aventuras. Dois partidos -o PSDB e o PT- organizaram-se, profissional e intelectualmente, como representantes desse realismo modernizante. Com o abandono pelo PT da pretensão confusa de oferecer alternativa, estreitaram-se as opções. O pleito municipal de agora marca uma etapa desse clareamento, polarizando o voto nas grandes cidades entre os dois partidos da modernidade desiludida.
Essa visão é plausível. Como muitas coisas plausíveis, é, porém, falsa. Há duas objeções elementares.
A primeira objeção é que, embora essa leitura dos fatos seja proposta em nome do realismo, o projeto abraçado tanto pelo PSDB quanto pelo neo-PT não funciona. Ou funciona muito mal. Dá ao país crescimento medíocre, bem inferior ao dos outros países continentais em desenvolvimento, e avanço medíocre na solução de seus problemas sociais. Está marcada em sua testa um estigma que o marca para morrer: a queda lenta e constante da renda popular. Que realistas são esses que não conseguem recolher as lições da realidade?
A segunda objeção é que confunde fenômeno de superfície com constrangimento profundo. O PSDB foi o centro da coalização que governou o país por oito anos. O PT palaciano é o centro da coalização que o governa agora. As forças governantes de ontem e de hoje atraíram hordas de políticos e, com elas, o tempo oficial de televisão. Institucionalizou-se a troca de favores públicos por dinheiro privado, regime que já existia, desorganizadamente, sob o governo anterior: por cada grande negócio realizado no país que dependa direta ou indiretamente de aprovação oficial, cobra-se dos empresários contribuição partidária. Com tudo isso, tornou-se ainda mais difícil levar alternativas, de nome e de mensagem, ao conhecimento do eleitorado. Este, porém, dá repetidas demonstrações de que se interessa por outro rumo e por outros agentes. Só não pode escolher quem não aparece.
Por um paradoxo feliz, a eleição presidencial é no Brasil a menos controlada pelo jogo do poder e do dinheiro. É ali que há a melhor oportunidade para afrouxar a corda com que os pseudo-realistas estrangulam, aos poucos, a vitalidade brasileira. Como? Juntando os elementos mais sérios da oposição. Lançando candidatura presidencial que evite extremismos e sectarismos, mas que seja inequívoca e intransigente na determinação de dar primazia aos interesses do trabalho e da produção e de acabar com a corrupção da política pelo dinheiro. Causando, desse jeito, susto e esperança, que acabarão por agregar apoios, primeiro da sociedade e depois de outros partidos. Quando começar a transparecer que temos como traduzir a idéia de uma alternativa produtivista, educadora e democratizante em projeto de poder, tudo mudará, de repente, na política brasileira.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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