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TENDÊNCIAS/DEBATES
Saber viver, saber morrer
FREI BETTO
O tema da vida é, paradoxalmente,
uma evocação da morte. Nesta árdua
aventura existencial que não escolhemos e, no entanto, assumimos, vida e
morte não são pólos antagônicos, mas
faces de um mesmo rosto: o do sentido
que imprimimos à nossa existência. Do
mais íntimo do nosso ser -lá onde tateia a psicanálise- ao mais social e público -onde balbuciam as ciências políticas-, a dialética da vida e da morte
é expressão de nossos anjos e demônios.
De algum modo, cada um de nós é
dois. "Não faço o bem que quero, mas o
mal que não quero", dizia são Paulo
(Romanos 7,19). Sem regredir ao maniqueísmo e, muito menos, negar a unidade ontológica do ser humano, é um
fato que a ideologia da morte impregna
em nossa existência o amargo sabor do
egoísmo. Subvertem a nossa bondade
intencional o Pinochet que nos habita,
o Hitler que nos leva à ira, o aprendiz de
ditador que se manifesta em nosso reduzido universo de poder.
Sim, como é difícil praticar, na esfera
pessoal, a democracia apregoada em
público! Nesse espaço cotidiano de inter-relações, toda espécie de opressão
pode brotar: palavras que agridem,
omissões que prejudicam, infidelidades que minam, ambições que poluem a
transparência dos
propósitos. Em nome
da vida, semeia-se a
morte alheia. Assina-se, assim, a própria
sentença, pois a vida
só alça vôo e transcende o próprio eu na
medida em que se faz
amor para os outros.
Falar da vida é erguer-se contra o sistema que estruturalmente se alimenta da morte. A agonia diária do trabalhador explorado, a
morte cívica dos direitos humanos negados, a marginalização política de
quem não participa da escolha de seus
governantes são sinais da necrofilia de
uma ordem social. A violência não está
engatilhada apenas no tambor de um
revólver. Ela o precede, engendrando
economicamente o contingente de excluídos do sistema. Nasce da decisão
política de arrancar o
pão da boca da coletividade, para que o valor
de troca prevaleça sobre
o valor de uso. Revestida de fetiche, a mercadoria entra no ritual dos
lucros e exclui do templo toda a multidão de
fiéis que não está revestida do manto sagrado
da propriedade privada
dos meios de produção
ou do capital.
Subvertem a nossa bondade intencional o Pinochet que nos habita, o Hitler que nos leva à ira
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Mas não é só de pão que temos fome.
Como diz o poeta cubano Onélio Cardoso, a fome de pão é saciável, fruto da
justiça; voraz e insaciável é a fome de
beleza -essa compulsiva atração que
sentimos pela transcendência, a razão
saturada em seus labirintos geométricos, o sabor estético que, em nosso silêncio, toma emprestadas a música, a
letra, a imagem, a forma e as cores que
exprimem o sentido do nosso existir.
É a sabedoria brotada da intuição que
nos aponta o caminho adequado. É tão
profundamente humana essa experiência de tocar o inefável que a fé o denomina Deus. No amor, o gesto traduz
essa sede, como quem ergue o copo repleto até a borda, bebe e constata, surpreso, que a sede foi apenas aplacada,
jamais saciada. Pois só a fonte de água
viva, à beira do poço de Jacó, liberta o
ser humano das seduções do absurdo e
lhe dá a conhecer a plenitude do absoluto. Pois Ele veio para dar a vida a todos, e vida em abundância (João 10,10).
Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), 53, frade
dominicano e escritor, é assessor de movimentos pastorais e sociais e autor do romance policial "Hotel Brasil" (Ática), entre outros livros.
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