São Paulo, Sexta-feira, 05 de Novembro de 1999
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TENDÊNCIAS/DEBATES

Saber viver, saber morrer


FREI BETTO

O tema da vida é, paradoxalmente, uma evocação da morte. Nesta árdua aventura existencial que não escolhemos e, no entanto, assumimos, vida e morte não são pólos antagônicos, mas faces de um mesmo rosto: o do sentido que imprimimos à nossa existência. Do mais íntimo do nosso ser -lá onde tateia a psicanálise- ao mais social e público -onde balbuciam as ciências políticas-, a dialética da vida e da morte é expressão de nossos anjos e demônios.
De algum modo, cada um de nós é dois. "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero", dizia são Paulo (Romanos 7,19). Sem regredir ao maniqueísmo e, muito menos, negar a unidade ontológica do ser humano, é um fato que a ideologia da morte impregna em nossa existência o amargo sabor do egoísmo. Subvertem a nossa bondade intencional o Pinochet que nos habita, o Hitler que nos leva à ira, o aprendiz de ditador que se manifesta em nosso reduzido universo de poder.
Sim, como é difícil praticar, na esfera pessoal, a democracia apregoada em público! Nesse espaço cotidiano de inter-relações, toda espécie de opressão pode brotar: palavras que agridem, omissões que prejudicam, infidelidades que minam, ambições que poluem a transparência dos propósitos. Em nome da vida, semeia-se a morte alheia. Assina-se, assim, a própria sentença, pois a vida só alça vôo e transcende o próprio eu na medida em que se faz amor para os outros.
Falar da vida é erguer-se contra o sistema que estruturalmente se alimenta da morte. A agonia diária do trabalhador explorado, a morte cívica dos direitos humanos negados, a marginalização política de quem não participa da escolha de seus governantes são sinais da necrofilia de uma ordem social. A violência não está engatilhada apenas no tambor de um revólver. Ela o precede, engendrando economicamente o contingente de excluídos do sistema. Nasce da decisão política de arrancar o pão da boca da coletividade, para que o valor de troca prevaleça sobre o valor de uso. Revestida de fetiche, a mercadoria entra no ritual dos lucros e exclui do templo toda a multidão de fiéis que não está revestida do manto sagrado da propriedade privada dos meios de produção ou do capital.

Subvertem a nossa bondade intencional o Pinochet que nos habita, o Hitler que nos leva à ira
Mas não é só de pão que temos fome. Como diz o poeta cubano Onélio Cardoso, a fome de pão é saciável, fruto da justiça; voraz e insaciável é a fome de beleza -essa compulsiva atração que sentimos pela transcendência, a razão saturada em seus labirintos geométricos, o sabor estético que, em nosso silêncio, toma emprestadas a música, a letra, a imagem, a forma e as cores que exprimem o sentido do nosso existir.
É a sabedoria brotada da intuição que nos aponta o caminho adequado. É tão profundamente humana essa experiência de tocar o inefável que a fé o denomina Deus. No amor, o gesto traduz essa sede, como quem ergue o copo repleto até a borda, bebe e constata, surpreso, que a sede foi apenas aplacada, jamais saciada. Pois só a fonte de água viva, à beira do poço de Jacó, liberta o ser humano das seduções do absurdo e lhe dá a conhecer a plenitude do absoluto. Pois Ele veio para dar a vida a todos, e vida em abundância (João 10,10).
Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), 53, frade dominicano e escritor, é assessor de movimentos pastorais e sociais e autor do romance policial "Hotel Brasil" (Ática), entre outros livros.



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