São Paulo, quinta-feira, 05 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os três caminhos da cultura

AUGUSTO BOAL

A primeira proposta econômica de Lula, presidente eleito, foi a de matar a fome de milhões de brasileiros; em política internacional, estender a mão aos argentinos; para o comércio entre países, propôs o escambo!
Propostas bem diferentes das que eram aceitas como inevitáveis, dentro do pensamento único. Coerente com essa nova visão de Brasil, o programa de Lula para a cultura deve ser criador.
Mas o que é a cultura? Num sentido amplo, somos todos produtores culturais, porque o primeiro objeto do nosso cultivo é a própria vida. Cultivamos a vida biológica, afetiva e social: o trabalho e o lazer, a guerra e a paz. Todos produzimos cultura: gente de uma mesma região, etnia ou religião.
A vida, para que exista e persevere, exige. É das respostas que damos às exigências da vida que nasce a cultura. Cultura é o "fazer", "como fazer", "para que" e "para quem" se faz. Castores constroem sempre os mesmos diques, geneticamente programados; pássaros fabricam sempre o mesmo ninho, cantando a mesma canção. Nós, seres humanos, somos capazes de inventar canções e arquiteturas!
Inventamos a roda para viajarmos mais longe do que podem as pernas; a ponte, para cruzarmos o rio; construímos casa que nos abrigue e roupa que nos proteja do sol e do frio. A cultura constitui-se em todas as atividades que satisfazem necessidades, mesmo supérfluas. É o "como fazer" o que se faz. Esse é o primeiro capítulo de uma nova proposta para a cultura, em um governo que já nasce inovando: a "Cultura como Vocação". Somos todos produtores culturais, desde as estrelas de TV até os camponeses do Acre, Rondônia e Roraima.
Para cobrir a mesa é necessária a toalha. Qualquer costureira é capaz de cortar um pano: eis a toalha. Uma rendeira do Ceará, no entanto, faz toalhas e vai além: o produto que fabrica é arte. A rendeira responde às suas necessidades estéticas. Sua toalha cobre a mesa e agrada aos olhos. Seu valor é maior. Tão grande que pode ser impossível usá-la como toalha que protege a mesa: é necessário proteger a toalha.
A arte faz parte da cultura. A cultura é o ser humano, é o que há de humano no ser, é aquilo que o distingue dos outros animais. Os produtores culturais, porém, não produzem apenas para si mesmos. Ao produzir para outros, seu produto torna-se mercadoria. O artista cria além do necessário imediato, cria o gozo. E o gozo pode tornar-se necessário e pode tornar-se mercadoria.


A arte, transformada em mercadoria, enfrenta o desafio das prateleiras e os rituais do leilão


Perigo mortal: quando um artista produz arte, responde à sua maneira de sentir, ver e pensar. Quando sua arte se transforma em mercadoria, introduz-se a demanda externa prioritária. A arte, transformada em mercadoria, enfrenta o desafio das prateleiras e os rituais do leilão. O artista responde não mais a si mesmo, mas à demanda do mercado, induzida pela propaganda. A vocação cultural torna-se profissão.
Em uma exposição de arte indígena, um dos expositores confessou: "Em nossa aldeia, fazemos estatuetas sem as cores vivas com que pintamos para o mercado paulista -os compradores preferem as coloridas!" Aquele índio era artista, tornou-se artesão: repete modelos. Fazia arte indígena; passou a fazer arte-para-o-branco. As leis do mercado são as leis dos mercadores, assim como a lei da selva é a lei do leão.
Um programa com as idéias e os ideais de Lula -que, alegres, compartimos!- deve proteger os artistas profissionais, nesse segundo capítulo, tão importante: a "Cultura como Profissão".
No processo globalizador, cultura e arte passam a servir ao mesmo propósito do comércio em geral: o lucro, a propaganda e a despersonalização dos artistas. Quando assistimos a um filme de Hollywood, não é só o enredo que temos que engolir goela abaixo: são os chapéus texanos, o uísque de Kentucky, os carros que explodem em modernas pontes de aço e são jogados ao mar sulcado de jet-skis; são as sirenes policiais e as metralhadoras que serão usadas pelos nossos traficantes, "up-to-date" com inovações bélicas. Um filme vende mais mercadorias do que os anúncios comerciais explícitos.
É importante para os globalizantes destruir as culturas nacionais, locais, pois elas são a identidade de quem as produz e, para dominar, é necessário destruir a identidade do dominado.
Para lutar pela nossa vida cultural, temos que estudar nosso passado, neste fantástico presente que estamos vivendo, para podermos inventar nosso futuro: eis a terceira vertente de um inovador plano cultural: a "Cultura como Memória do Passado e como Invenção do Futuro".
Cultura não é luxo: sou eu, é você, é o Lula! É o povo na praça. "A praça que é do povo, como o céu é do condor!" -já dizia o poeta Castro Alves!


Augusto Boal, 70, diretor de teatro e dramaturgo, dirige o Centro de Teatro do Oprimido (RJ)


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