São Paulo, Quinta-feira, 06 de Janeiro de 2000


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Uma palavra para o novo ano


Teremos prestígio para convocar uma constituinte com a missão de instituir o parlamentarismo


GOFFREDO TELLES JUNIOR

Uma palavra de esperança! Foi o que meus amigos me pediram.
A mão treme, treme o coração... Eu gostaria que minha pequena palavra tivesse a virtude de transmitir toda a emoção vinda do céu e da terra, toda a perseverante confiança no Brasil de que meu espírito se acha possuído.
Eu bem sei o que meus amigos querem. Querem mais um pouco da água de que bebo, a água de que andamos necessitados, para essa sede desalterável que a todos queima e aflige.
O que eu mais desejo é, precisamente, dar-lhes dessa água. Mas vejam: essa água é um sonho. É meu sonho e é o sonho de alguns, talvez de muitos. É o sonho dos que sabem que sem o sonho a vida não vale a pena e que a melhor aventura da vida é a peleja para transformar o sonho em realidade.
Não há nisso nenhum delírio. Não há nenhum devaneio ingênuo nessa sagrada façanha, nem dogmatismo ideológico no manancial de minhas convicções. Somos estudantes; uns são moços, outros velhos como eu. Somos, todos, estudantes da vida, dotados da juventude perene dos sonhadores. Somos vigilantes da realidade. Estamos atentos aos requisitos da convivência humana. Somos extraordinariamente sensíveis aos clamores sociais.
Sonhamos com a justiça. Queremos justiça, mais justiça, mais justiça... Às vezes, almejamos por uma justiça que o texto frio da lei não logra alcançar. Mas odiamos as peripécias feitas em nome da justiça, com desprezo pela lei. A história da humanidade nos ensinou, em definitivo, que o biombo de ideais de justiça tem sido usado, em épocas de equívocos e desnorteamento, para violar as leis, destruir a liberdade, quebrar direitos e garantias essenciais e instalar o arbítrio e a ditadura.
Sonhamos com a justiça e queremos leis que nos ajudem a nos aproximar dela. Em sociedades de seres humanos, não nos parece possível a justiça sem a lei. Queremos leis, sim, porque não somos loucos. Sabemos que, quando somos prejudicados ou agredidos, abraçamo-nos às leis. Sabemos que os conflitos da vida apontam mil caminhos e que a justiça efetiva não emerge, simplesmente, das pressões dos interesses imediatos. Também não aflora, sem mais, dos clamores desencadeados das ruas. Nas leis é que vamos buscar as soluções procuradas.
Mas queremos que as leis -mesmo quando resultam de uma sincera consulta aos ânimos da população- sejam uma opção trabalhada do Poder competente, uma decisão do Poder Legislativo, mandamentos elaborados em conformidade com o processo legislativo, estabelecido na Constituição.
O que não toleramos são as contrafações das leis, produzidas pelo Poder Executivo, baixadas de cima para baixo, como carga descida na ponta de um cabo. O que exigimos é que as leis sejam válidas e sejam legítimas.
Precisarei eu dizer qual é a natureza de nossa sede?
Uma parte importante da água de que andamos necessitados se chama validade e legitimidade. De fato, o que desejamos é que as ordens do governo não violem a Constituição e sejam válidas; não violem a vontade geral do povo e sejam legítimas.
Queremos, é certo, o combate à inflação. Queremos, sim, a estabilidade econômica. Mas o que almejamos é alcançar tudo isso por meio de leis válidas e legítimas. O que não queremos são subserviências desnacionalizantes, com desapreço pela Lei Magna e agravo à ordem jurídica instituída.
Para aplacar nossa aflitiva sede, o que precisamos é de um Brasil honesto.
Então, venho exortar os que clamam por um Brasil honesto a celebrar uma grande aliança. Vamos formar uma frente espiritual para dar ao Brasil a seriedade perdida.
Vamos repudiar o desrespeito à Constituição, a patifaria oficial, a corrupção institucionalizada. Vamos denunciar e combater o suborno, a negociata, a depravação nas áreas dos serviços públicos e dos negócios particulares. Vamos renegar e repelir, nas atividades políticas, o oportunismo desbragado, o cinismo, a displicência criminosa, o desprezo pelo cumprimento do dever, o atentado à moral. Vamos alicerçar nossa aliança na dignidade essencial da pessoa, na ressurreição dos bens soberanos do ser humano.
Pela determinação que nos há de congregar, transmudaremos nossas desilusões numa afirmação de esperança. Sonhadores do Brasil, unamo-nos! Aliem-se os partidos da indignação e da esperança! Unam-se a nós os sonhadores dos demais partidos!
Com isso, em verdade, estaremos colimando, afinal, a articulação dos inconformados e arquitetando a coligação dos movimentos populares e partidos políticos da vanguarda progressista indignada. Estaremos edificando a muralha moral do nosso país.
Apoiados nessa fortaleza, exigiremos, antes de mais nada, a inversão do modelo econômico vigente, a consagração do ideal do bem comum e o reconhecimento da primazia dos fins sociais no planejamento do Estado. Exigiremos, do Poder Executivo e do Legislativo, as providências necessárias para pôr fim à miséria, para dar teto aos desvalidos, para socorrer os doentes desamparados, para extinguir o analfabetismo, para oferecer educação e cultura a todos, para incentivar a agricultura e aperfeiçoar a indústria, para retomar o crescimento, para reduzir a taxa dos juros finais, para diminuir a carga tributária direta sobre a renda dos assalariados, para a consecução do equilíbrio orçamentário da Previdência Social, para racionalizar o sistema tributário e distribuir com equidade a riqueza, para impedir privatizações ruinosas e a dilapidação do patrimônio público, para elaborar urgentemente as leis complementares da Constituição, para reestruturar o Poder Judiciário e a polícia, para aperfeiçoar a missão dos partidos, para impôr o regime de fidelidade partidária, para dar autenticidade à representação política, para proibir reeleições.
Teremos, também, prestígio e legitimidade para convocar uma Assembléia Nacional Constituinte autônoma e exclusiva, com a missão de instituir o parlamentarismo e criar um regime de representação política autêntica.
Pelo fascínio de um só e mesmo sonho, seremos impelidos a deflagrar a cruzada da reforma do Estado.


Goffredo da Silva Telles Junior, 84, advogado, é professor emérito da Universidade de São Paulo e professor titular da Faculdade de Direito da mesma universidade. É autor, entre outros, de "Carta aos Brasileiros", "A Folha Dobrada", "O Direito Quântico". Foi deputado federal constituinte em 1946.



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