São Paulo, sábado, 06 de março de 2004

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SIM

A hora e a vez do Congresso Nacional

CARLOS AURÉLIO MOTA DE SOUZA

Em 1946 , na Presidência de Eurico Gaspar Dutra, foram fechados os cassinos no Brasil, famosos centros de jogo que atraíam turistas do exterior e do país. Nenhuma comoção social nem grandes abalos políticos ou econômicos, e a medida permanece respeitada há mais de 50 anos. Resultou de um decidido ato político, aprovado pela sociedade da época, imbuída de fortes valores éticos e morais.
A Medida Provisória do presidente Lula, proibindo os bingos e as máquinas de jogos, por um lado provocou os mesmos aplausos, mas também manifestações de repúdio dos empresários e desempregados. As motivações do ato presidencial foram facilmente assimiladas: econômicas, porque as empresas estariam sonegando os devidos tributos; sociais, por não repassarem às entidades esportivas assistidas os 7% dos lucros que lhes eram devidos; mas sobretudo políticas, porque serviriam à lavagem de dinheiro ilícito -principalmente porque as denúncias atingiam as ante-salas presidenciais.
Ora, o jogo em geral, como o fumo, as bebidas e outras paixões, só é permitido e subsiste incólume quando paga impostos. Os bons malandros procuram ser honestos. Aproveitam a zona cinzenta da lei e não são banidos. Exploram a ignorância e a ambição populares, como a dos compradores de certos carnês, que são também um jogo, que, porém, paga impostos e, por isso, nada acontece, está na zona limítrofe entre a moral e o direito -como se pudessem ser separados.
Por que, então, o bingo foi condenado? Não por ser jogo de azar, pois foi a sociedade brasileira que o desenvolveu, como brincadeira nas reuniões de família, nos encontros beneficentes, nos clubes associativos, até se tornar uma cultura nacional. E esse lazer ou obra de caridade não merece punição, mas sim a exploração comercial e o mau uso que dele se fez. A suspensão foi pela sua utilização como instrumento de desonestidade e de corrupção.
Como todo jogo, o bingo é reconhecidamente um mal social, pelos prejuízos morais, econômicos e familiares que acarreta. Corrida de cavalos também é ruim, cria vícios, faz perder fortunas, mas contribui para o fisco. O jogo, como a bebida, o fumo e a droga, não se combate frontalmente, com discursos moralistas. Vícios, de quaisquer espécies, não devem ser estimulados, sobretudo pelos meios de comunicação, mas há que salvar e proteger os usuários que a eles sucumbem por causa da fraqueza moral de algumas pessoas.
Em muitos países o jogo existe, mas com níveis aceitáveis de organização e idoneidade que se refletem em trabalhadores treinados e organizados e no pagamento de altos tributos, além da restrição ao incitamento publicitário.
A MP, como ato legislativo, foi tosca, inopinada, contundente e incompreensível, diante dos prejuízos pelo desemprego multitudinário que provocou. Atingiu, porém, objetivos precisos, bastantes para estancar as maquinações mafiosas denunciadas por um vídeo nas televisões do país. Agora é o Congresso que deve decidir e aperfeiçoar a nova legislação, os representantes da sociedade, os intérpretes dos anseios sociais, não o presidente da República, pois não representa a opinião nacional.
São os congressistas que devem fazer as avaliações e, se opinarem pela reabertura dos bingos, devem estabelecer regras para que tenham uma inequívoca e efetiva função social, exeqüível em termos de funcionamento, fiscalização e tributação, e para que o jogo não se transforme em oportunidade para investidas aventureiras e lesivas -e menos ainda para a expansão de uma cultura que infelicita o Brasil desde a invenção da loteria dos animais pelo barão de Drummond, em 1892.
O jogo, como vinha sendo exercido, gerou corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico de influências políticas; doravante deverá ser submetido a severo controle administrativo, fiscal e tributário, com regras rigorosas, para que não se converta em matriz de todas as corrupções. O espírito que inspirou a MP podia estar politicamente incorreto, mas seus efeitos produziram um bem inesperado, ainda não avaliado em toda a sua profundidade: abrir o poder à consciência de um problema ético, social e econômico, e a valiosa oportunidade para os representantes do povo definirem e regulamentarem uma atividade cinzenta, muito bem encastelada entre o bem e o mal.
A sociedade, no entanto, a opinião pública brasileira, em todos seus segmentos, nesta quadra de definição de princípios éticos e morais, deve assumir um protagonismo que se identifique com suas raízes históricas, de tradição fortemente cristã, para que o Brasil se reafirme como o país do trabalho e do estudo, e não o país da batota, do lucro fácil, da sonegação fiscal e da corrupção.


Carlos Aurélio Mota de Souza, 71, advogado, membro do Tribunal de Ética da OAB-SP, é professor livre-docente na Unesp e na Univem.


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