São Paulo, terça-feira, 06 de abril de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Adeus ao passado (e talvez ao futuro)
ZANDER NAVARRO
São artigos que, se não decretam a morte do pensamento de esquerda no Brasil, demonstram, primeiramente, e à exaustão, o seu estado terminal, revelando o indigente debate político reinante. Textos inspirados, em especial, nas ações do partido político que herdou as tradições mais generosas da esquerda brasileira, mas preferiu imergir despudoradamente nos jogos do poder, sem preocupação com o preço ético da sua escolha. Parte importante dessas interpretações peca, sobretudo, pela incapacidade de leitura histórica do período recente. Como chegamos a esse estado de coisas? A resposta à pergunta, se ancorada nos fatos seguintes à democratização do país, em 1985, permitiria entender mais claramente os anos seguintes e o momento atual. Há, em especial, a saliência de três processos principais que foram moldando o PT e suas ações nos anos recentes. Primeiramente, e como fato fundador, inclusive internacional, o estilhaçamento da utopia socialista gerado pelos eventos de 1989, cujos impactos, verdadeiramente "longue durée", feriram profundamente a esquerda mundial. No plano mais mundano do cotidiano da política, fez desaparecer de cena o papel orientador que usualmente utopias inspiram em grandes grupos sociais, instituindo o presentismo, pois o futuro deixou de existir. Inclusive eliminou a vigilância crítica do passado petista em relação a si próprio. Utopias, como ressaltou Zygmunt Bauman em antigo livro, "averiguam o campo do possível no qual o real ocupa apenas pequena parte; utopias abrem caminho para uma atitude e uma atividade crítica, as quais, por si mesmas, podem transformar os predicamentos atuais dos indivíduos". Se uma orientação utópica inexiste, também essa atitude sóbria perde seu significado histórico e não mais molda os comportamentos sociais. O segundo fator determinante foi decorrente das vitórias eleitorais e da crescente apropriação partidária das esferas do Estado. Abriu caminho para uma nova geração de militantes, recrutada na última década, mas inteiramente descomprometida com qualquer inspiração política estratégica (ou utópica), em face das razões antes apontadas. Essa nova geração, hoje a ampla maioria do partido, deixou, por absoluta desnecessidade, de refletir sobre a nação e sobre os constrangimentos de sua história, tornando-se incapaz de propor projetos de futuro. Sem uma idéia-força a orientar ideologicamente essa crescente fração de militantes, o que sobrou foi, tão-somente, a busca incessante às prebendas associadas ao poder. Esse fato rebaixou espantosamente o debate político interno e escancarou as portas para o privilegiamento de ambições, pessoais e dos inúmeros subgrupos existentes. Mais cruamente: o PT dos anos 90 passou a se orientar exclusivamente pelo acesso ao emprego e às formas de mobilidade social, o restante ocupando apenas o campo da retórica eleitoreira. O terceiro e decisivo fator, desde 1989, igualmente deriva do crescimento do PT e de seu crescente sucesso eleitoral, mas não representa novidade nenhuma, já tendo sido esmiuçado há quase cem anos. Não requer explicações, mas é raramente citado. Basta ler "Os Partidos Políticos", de Robert Michels, que analisou o partido socialista alemão no alvorecer do século passado e desvendou o fenômeno da oligarquização do partido e os comportamentos políticos, crescentemente conservadores e distorcidos, daí decorrentes. Se melhor conhecida, sua argumentação aplicada ao fenômeno petista permitiria antecipar diversas facetas que ainda parecem espantar intelectuais situados na órbita desse campo partidário. O somatório dos processos políticos e sociais citados, históricos ou imediatos, é que explica o governo de pastelão que temos. Do casal presidencial, cujo anedótico deslumbramento adolescente sonha com o próximo cartão postal, já usando o novíssimo avião, à grave ameaça ao Ministério Público, cuja soberania, não obstante o estrelismo doentio de alguns de seus integrantes, precisa ser ferreamente preservada, se alguma democracia deve existir no país. Do medíocre ministério formado para atender o loteamento dos cargos, no qual ministros desconhecem as missões de seus respectivos cargos, à absurda política macroeconômica que sufoca o tecido produtivo e vai semeando a desesperança. Da ampliação de cargos decorrente da recente medida provisória, sancionada para garantir ainda mais amplo acesso a posições demandadas por militantes, ao gradual esfacelamento de uma ordem política que, assim sonhávamos, era para ser republicana e democrática, como pareciam indicar as luzes do período seguinte ao regime civil nascido em 1985. Enganamo-nos. Infelizmente, continuaremos esperando o futuro. Zander Navarro, 51, é professor visitante da Universidade de Sussex (Inglaterra) e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Édis Milaré: "Politização" na gestão ambiental Índice |
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