São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deus feito pão

FREI BETTO

Páscoa é travessia. Também para uma ética política, que torne o pão acessível a cada boca, e o vinho, alegria em cada alma

QUEM AINDA brinca de criança no domingo de Páscoa e esconde ovos de chocolate no jardim? Resta em nós uma perene idade da inocência. A ternura denuncia a veracidade do amor, sublinha Milan Kundera. Recôndito no qual evocamos, nostálgicos, as missas de domingo, as procissões sob andores cercados de velas, o toque salvífico da água benta, o silêncio acolhedor de igrejas que o gótico não teve vergonha de desenhar como vulvas estilizadas.
Jesus ressuscitou! Celebra essa festa de aleluias. Ainda que a razão não alcance a dimensão do fato pascal, a intuição capta a crise da modernidade a nos induzir a um mundo sem mistérios e enigmas. Mundo sombrio, onde os mortos se sobrepõem aos vivos.
Até o iluminismo, a inteligência recendia a incenso. Copérnico e Galileu decifraram a harmonia da natureza como reflexo do Criador, e Newton acertou seus cálculos pelos ponteiros dos relógios das catedrais. Depois, o dilúvio inundou os claustros. A razão irrompeu soberana, relegando à superstição tudo que não fosse mensurável. Então, o mistério aflorou.
De que valem perguntas quando se julga possuir todas as respostas? Voltaire e os enciclopedistas ousaram secularizar a inteligência e, mais tarde, Baudelaire e Rimbaud tatearam ávidos em busca de um Deus capaz de aplacar sua sede de absoluto. Dostoiévski revestiu-se da figura emblemática de Jesus, despiu seus monges das vestes eclesiásticas e escancarou sua alma atormentada pelos demônios da dúvida. Nietzsche roubou o fogo dos deuses e incendiou de liberdade o espírito humano. Sartre proclamou que o inferno são os outros e erigiu o absurdo da morte em ato final que destitui a vida de todo sentido.
Entre angústias e utopias, o último século foi também marcado pelo enigma Jesus. Corações e mentes o acolheram como paradigma: Claudel, Simone Weil, François Mauriac, Chesterton, Péguy, Graham Greene etc. No Brasil, Murilo Mendes, Sobral Pinto, Gustavo Corção, Tristão de Athayde, Hélio Pellegrino etc.
Hoje, pavores transcendentais já não atribulariam a alma poética de um William Blake. Entre tanta miséria, esvai-se o encanto. Jesus é Deus que se fez homem e, de homem, virou pão. Pai nosso/pão nosso. Essa concretude assusta. A fé cristã não proclama a ressurreição da alma, mas "da carne". Jesus não é a figura do Olimpo grego enaltecida pela força irrepresável da literatura. É o judeu crucificado, por razões político-religiosas, na Palestina do século 1 e cujas aparições, como ressuscitado, contradizem as regras da ficção literária.
Que autor criaria um personagem imortal com chagas nas mãos e ansioso por comida? As narrativas evangélicas são, tecnicamente, descrições de um fato objetivo. À luz da fé, proclamação de que Jesus é o Cristo.
Antes de cair em mãos da repressão que o assassinou, Jesus fez-se comida e bebida. Poeta e profeta, dominava a linguagem realista dos símbolos. Eis aqui o desafio atual à inquietude da inteligência. O pão repartido passa a ser corpo divino; o vinho partilhado, aliança feita com sangue e prenúncio da festa sem fim. O Deus de Jesus não é um velho Narciso à cata de adoradores nem um algoz irado com os pecadores. É Abba, o pai amoroso ("mais mãe do que pai", diria João Paulo 1º), cujo dom maior é a vida.
Já não temos as longas guerras que inquietaram espíritos como Tolstói e Camus; o que vemos, de Bagdá a Guantánamo, é escabroso comparado à engenharia marcial dos exércitos em conflito: a estrada rumo ao futuro palmilhada de corpos degradados e famintos. Hoje, tropeça-se na rua em seres esquartejados em sua dignidade. Todos os discursos oficiais e os ajustes fiscais ofendem a condição humana por exaltar a concentração do lucro e ignorar a partilha da vida.
Em sua hipocrisia, o sistema salva sua aura cristã e exclui o pão. A metafísica monetarista estabiliza moedas e desestabiliza famílias; reduz a inflação e aumenta a miséria; socorre bancos e multiplica o desemprego; abraça o mercado e despreza o direito à vida -e vida em abundância, para todos.
A globalização despolitiza, o esoterismo desculpabiliza e o consumismo individualiza. Livres de ideologias messiânicas, culpas aterrorizadoras e altruísmo coletivo, estamos à deriva neste novo século, cujas pitonisas proclamam que "a história acabou".
Páscoa é travessia -também para uma ética política, que torne o pão acessível a cada boca e, o vinho, alegria em cada alma. Somos nós que, em vida, precisamos ressuscitar as potencialidades do espírito, premissas e promessas de uma verdadeira dignidade humana. Num misto de Proust e "Caçador da Arca Perdida", precisamos urgentemente empreender a busca da consciência perdida, onde a solidária indignação contra as injustiças tenha cheiro de "madeleines" apetitosas. Caso contrário, seremos engolidos por esses simulacros de pirâmides -shopping centers- que nem sequer têm estrutura para contar à posteridade quão grande foi a pobreza de espírito de uma geração que tinha, como suprema ambição, meia dúzia de engenhocas eletrônicas.


CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, o Frei Betto, 62, frade dominicano e escritor, é autor de, entre outras obras, "Treze contos diabólicos e um angélico". Foi assessor especial da Presidência da República (2003-2004).

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