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TENDÊNCIAS/DEBATES
Deus feito pão
FREI BETTO
Páscoa é travessia. Também para uma ética política, que torne o pão acessível a cada boca, e o vinho, alegria em cada alma
QUEM AINDA brinca de criança
no domingo de Páscoa e esconde ovos de chocolate no jardim? Resta em nós uma perene idade
da inocência. A ternura denuncia a
veracidade do amor, sublinha Milan
Kundera. Recôndito no qual evocamos, nostálgicos, as missas de domingo, as procissões sob andores cercados de velas, o toque salvífico da água
benta, o silêncio acolhedor de igrejas
que o gótico não teve vergonha de desenhar como vulvas estilizadas.
Jesus ressuscitou! Celebra essa festa de aleluias. Ainda que a razão não
alcance a dimensão do fato pascal, a
intuição capta a crise da modernidade
a nos induzir a um mundo sem mistérios e enigmas. Mundo sombrio, onde
os mortos se sobrepõem aos vivos.
Até o iluminismo, a inteligência recendia a incenso. Copérnico e Galileu
decifraram a harmonia da natureza
como reflexo do Criador, e Newton
acertou seus cálculos pelos ponteiros
dos relógios das catedrais. Depois, o
dilúvio inundou os claustros. A razão
irrompeu soberana, relegando à superstição tudo que não fosse mensurável. Então, o mistério aflorou.
De que valem perguntas quando se
julga possuir todas as respostas? Voltaire e os enciclopedistas ousaram secularizar a inteligência e, mais tarde,
Baudelaire e Rimbaud tatearam ávidos em busca de um Deus capaz de
aplacar sua sede de absoluto. Dostoiévski revestiu-se da figura emblemática de Jesus, despiu seus monges
das vestes eclesiásticas e escancarou
sua alma atormentada pelos demônios da dúvida. Nietzsche roubou o
fogo dos deuses e incendiou de liberdade o espírito humano. Sartre proclamou que o inferno são os outros e
erigiu o absurdo da morte em ato final
que destitui a vida de todo sentido.
Entre angústias e utopias, o último
século foi também marcado pelo
enigma Jesus. Corações e mentes o
acolheram como paradigma: Claudel,
Simone Weil, François Mauriac,
Chesterton, Péguy, Graham Greene
etc. No Brasil, Murilo Mendes, Sobral
Pinto, Gustavo Corção, Tristão de
Athayde, Hélio Pellegrino etc.
Hoje, pavores transcendentais já
não atribulariam a alma poética de
um William Blake. Entre tanta miséria, esvai-se o encanto. Jesus é Deus
que se fez homem e, de homem, virou
pão. Pai nosso/pão nosso. Essa concretude assusta. A fé cristã não proclama a ressurreição da alma, mas "da
carne". Jesus não é a figura do Olimpo
grego enaltecida pela força irrepresável da literatura. É o judeu crucificado, por razões político-religiosas, na
Palestina do século 1 e cujas aparições, como ressuscitado, contradizem as regras da ficção literária.
Que autor criaria um personagem
imortal com chagas nas mãos e ansioso por comida? As narrativas evangélicas são, tecnicamente, descrições de
um fato objetivo. À luz da fé, proclamação de que Jesus é o Cristo.
Antes de cair em mãos da repressão
que o assassinou, Jesus fez-se comida
e bebida. Poeta e profeta, dominava a
linguagem realista dos símbolos. Eis
aqui o desafio atual à inquietude da
inteligência. O pão repartido passa a
ser corpo divino; o vinho partilhado,
aliança feita com sangue e prenúncio
da festa sem fim. O Deus de Jesus não
é um velho Narciso à cata de adoradores nem um algoz irado com os pecadores. É Abba, o pai amoroso ("mais
mãe do que pai", diria João Paulo 1º),
cujo dom maior é a vida.
Já não temos as longas guerras que
inquietaram espíritos como Tolstói e
Camus; o que vemos, de Bagdá a
Guantánamo, é escabroso comparado
à engenharia marcial dos exércitos
em conflito: a estrada rumo ao futuro
palmilhada de corpos degradados e
famintos. Hoje, tropeça-se na rua em
seres esquartejados em sua dignidade. Todos os discursos oficiais e os
ajustes fiscais ofendem a condição
humana por exaltar a concentração
do lucro e ignorar a partilha da vida.
Em sua hipocrisia, o sistema salva sua
aura cristã e exclui o pão. A metafísica
monetarista estabiliza moedas e desestabiliza famílias; reduz a inflação e
aumenta a miséria; socorre bancos e
multiplica o desemprego; abraça o
mercado e despreza o direito à vida
-e vida em abundância, para todos.
A globalização despolitiza, o esoterismo desculpabiliza e o consumismo
individualiza. Livres de ideologias
messiânicas, culpas aterrorizadoras e
altruísmo coletivo, estamos à deriva
neste novo século, cujas pitonisas
proclamam que "a história acabou".
Páscoa é travessia -também para
uma ética política, que torne o pão
acessível a cada boca e, o vinho, alegria em cada alma. Somos nós que, em
vida, precisamos ressuscitar as potencialidades do espírito, premissas e
promessas de uma verdadeira dignidade humana. Num misto de Proust e
"Caçador da Arca Perdida", precisamos urgentemente empreender a
busca da consciência perdida, onde a
solidária indignação contra as injustiças tenha cheiro de "madeleines"
apetitosas. Caso contrário, seremos
engolidos por esses simulacros de pirâmides -shopping centers- que
nem sequer têm estrutura para contar à posteridade quão grande foi a
pobreza de espírito de uma geração
que tinha, como suprema ambição,
meia dúzia de engenhocas eletrônicas.
CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, o Frei Betto, 62,
frade dominicano e escritor, é autor de, entre outras
obras, "Treze contos diabólicos e um angélico". Foi assessor especial da Presidência da República (2003-2004).
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