São Paulo, Terça-feira, 06 de Abril de 1999
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João Grilo, Chicó e os clássicos

ARIANO SUASSUNA

Quando resolveu encenar o "Auto da Compadecida" na televisão, Guel Arraes me pediu permissão para incluir, no espetáculo, personagens e episódios de três peças minhas, assim como outros que ele pensava em trazer de autores clássicos ligados ao teatro popular e ao conto picaresco. Respondi que estava de acordo com a inclusão dos primeiros, mas fazia restrições à dos clássicos. Adiantei, porém, que, caso ele os considerasse indispensáveis, eu concordaria, pois confiava em seu bom gosto.
Foi de tal conversa que resultou a presença, no "Auto", de personagens e episódios de "A Pena e a Lei", da "Farsa da Boa Preguiça", de "O Santo e a Porca", mas também a de episódios de contos de Boccaccio, de peças de Molière e Shakespeare (este, a meu ver, o menos bem colocado dos três).
Gostei muito de ver meu "Auto" na televisão, chegando, mais uma vez, à evidência de como é poderoso esse meio de comunicação: a peça foi escrita em 1955 mas somente agora é que ficou mais conhecida por velhos e crianças, por ricos e pobres, que têm me detido na rua para comentá-la comigo. Por isso, e por outras coisas, serei sempre grato ao diretor e aos atores que realizaram, com ela, o belo espetáculo que nos comoveu a todos.
No entanto, acho que movidos por alegria parecida com a minha, os responsáveis pela programação da Rede Globo propuseram que fizéssemos uma nova série de 12 episódios, alguns retirados de minha obra e outros dos clássicos, mas todos tendo João Grilo e Chicó como personagens principais.
A princípio, grato ao diretor e aos atores do "Auto da Compadecida", pensei em aceitar. Mas tinha medo de banalizar e vulgarizar João Grilo e Chicó num seriado artisticamente inferior ao "Auto"; assim como temia ver os dois como protagonistas de episódios que não eram meus. Eram escritos por autores dos maiores da literatura universal; mas, até por isso mesmo, João Grilo e Chicó não tinham nada que se meter na pele de seus personagens. Como já expliquei, fazia restrições até à inclusão de episódios clássicos no "Auto da Compadecida". Mas, pelo menos, tratava-se, ali, apenas de incluí-los, ocasionalmente, no arcabouço geral de uma obra minha; enquanto que no caso dos futuros episódios, achei que não tinha sentido colocar João Grilo e Chicó como protagonistas das histórias criadas por Boccaccio ou Molière. Acho, mesmo, que, se os dois fossem vivos, protestariam, preferindo, com toda razão, que seus próprios personagens as narrassem.
Em tudo, eu só não queria era parecer ranzinza, radical e ingrato com o diretor e os atores do belo espetáculo que fizeram com minha peça. Mas, por parte de Guel Arraes, recebi uma carta atenciosa e amiga, na qual ele afirma que compreende e aceita minha decisão (se bem que ache que a boa qualidade artística poderia ser mantida nos episódios).
De qualquer maneira, desisti do novo seriado. E estou convencido de que, ao agir assim, tomei a decisão melhor para mim, para Guel Arraes, para os atores e até para Molière e Boccaccio, que não mais serão obrigados a ver os dois amarelinhos brasileiros emburacando de obras suas adentro em episódios criados, noutro contexto, pelo gênio dos dois.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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