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João Grilo, Chicó e os clássicos
ARIANO SUASSUNA
Quando resolveu encenar o "Auto
da Compadecida" na televisão, Guel
Arraes me pediu permissão para incluir, no espetáculo, personagens e
episódios de três peças minhas, assim
como outros que ele pensava em trazer de autores clássicos ligados ao teatro popular e ao conto picaresco. Respondi que estava de acordo com a inclusão dos primeiros, mas fazia restrições à dos clássicos. Adiantei, porém,
que, caso ele os considerasse indispensáveis, eu concordaria, pois confiava em seu bom gosto.
Foi de tal conversa que resultou a
presença, no "Auto", de personagens e episódios de "A Pena e a Lei",
da "Farsa da Boa Preguiça", de "O
Santo e a Porca", mas também a de
episódios de contos de Boccaccio, de
peças de Molière e Shakespeare (este,
a meu ver, o menos bem colocado dos
três).
Gostei muito de ver meu "Auto" na
televisão, chegando, mais uma vez, à
evidência de como é poderoso esse
meio de comunicação: a peça foi escrita em 1955 mas somente agora é
que ficou mais conhecida por velhos e
crianças, por ricos e pobres, que têm
me detido na rua para comentá-la comigo. Por isso, e por outras coisas, serei sempre grato ao diretor e aos atores que realizaram, com ela, o belo espetáculo que nos comoveu a todos.
No entanto, acho que movidos por
alegria parecida com a minha, os responsáveis pela programação da Rede
Globo propuseram que fizéssemos
uma nova série de 12 episódios, alguns
retirados de minha obra e outros dos
clássicos, mas todos tendo João Grilo
e Chicó como personagens principais.
A princípio, grato ao diretor e aos
atores do "Auto da Compadecida",
pensei em aceitar. Mas tinha medo de
banalizar e vulgarizar João Grilo e
Chicó num seriado artisticamente inferior ao "Auto"; assim como temia
ver os dois como protagonistas de episódios que não eram meus. Eram escritos por autores dos maiores da literatura universal; mas, até por isso
mesmo, João Grilo e Chicó não tinham nada que se meter na pele de
seus personagens. Como já expliquei,
fazia restrições até à inclusão de episódios clássicos no "Auto da Compadecida". Mas, pelo menos, tratava-se,
ali, apenas de incluí-los, ocasionalmente, no arcabouço geral de uma
obra minha; enquanto que no caso
dos futuros episódios, achei que não
tinha sentido colocar João Grilo e Chicó como protagonistas das histórias
criadas por Boccaccio ou Molière.
Acho, mesmo, que, se os dois fossem
vivos, protestariam, preferindo, com
toda razão, que seus próprios personagens as narrassem.
Em tudo, eu só não queria era parecer ranzinza, radical e ingrato com o
diretor e os atores do belo espetáculo
que fizeram com minha peça. Mas,
por parte de Guel Arraes, recebi uma
carta atenciosa e amiga, na qual ele
afirma que compreende e aceita minha decisão (se bem que ache que a
boa qualidade artística poderia ser
mantida nos episódios).
De qualquer maneira, desisti do novo seriado. E estou convencido de
que, ao agir assim, tomei a decisão
melhor para mim, para Guel Arraes,
para os atores e até para Molière e
Boccaccio, que não mais serão obrigados a ver os dois amarelinhos brasileiros emburacando de obras suas adentro em episódios criados, noutro contexto, pelo gênio dos dois.
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
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