São Paulo, sexta-feira, 06 de junho de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES A grande mentira e os intelectuais engajados
DEMÉTRIO MAGNOLI
Wolfowitz é um dos principais ideólogos dos neoconservadores republicanos, que desde o 11 de setembro definem a política externa da administração Bush. As suas declarações evidenciam a autoconfiança arrogante dessa corrente, pois ele disse aquilo que não poderia ser dito: Washington mentiu deliberada e sistematicamente para os cidadãos americanos e a ONU, inventando um pretexto destinado a legitimar a guerra no Iraque. Sob a cobertura desse pretexto, a "nova Roma" instalou um protetorado militar no Iraque e opera para reorganizar toda a geopolítica do Oriente Médio. Esse empreendimento neo-imperial atinge a precária estabilidade do mundo árabe e muçulmano, alimentando a fonte do fundamentalismo e difundindo as sementes do terrorismo. A monumental inconfidência de Wolfowitz reverberou no Parlamento britânico, onde se articula um inquérito sobre os motivos alegados pelo gabinete de Tony Blair para ir à guerra. Até mesmo nos EUA, parlamentares começam a questionar abertamente as justificativas do governo e os documentos de inteligência que as sustentaram. A grande mentira, repetida todos os dias na mídia global, está em via de desmoronar. Mas a entrevista do ideólogo falastrão teve pequena repercussão na mídia e praticamente não atingiu a opinião pública mundial. A cortina de silêncio que a acompanhou decorre da renúncia dos intelectuais a analisar objetivamente a guerra de Bush. Desde o 11 de setembro, a opinião pública está à mercê de formadores de opinião que se engajaram na produção de narrativas puramente ideológicas sobre a política externa de Washington. Num dos pólos opostos do espectro político encontram-se os intelectuais engajados na legitimação da política dos neoconservadores republicanos. Eles explicaram que, com ou sem armas de destruição em massa, o Iraque devia ser invadido, pois os EUA decidiram-se a empreender a obra iluminista de difusão dos valores democráticos do Ocidente no mundo árabe e muçulmano. Sob a perspectiva desses intelectuais, a fabricação da grande mentira não tem importância, pois o virtuoso fim suposto justifica os meios tortos. No outro extremo do espectro político encontram-se os intelectuais fascinados pelo terror, que saudaram aberta ou veladamente os atentados de 11 de setembro. Eles explicaram que a política externa de Bush é, simplesmente, a continuidade do "imperialismo americano": os EUA pretendem "roubar o petróleo do Iraque" e, depois, invadir um a um os países do Oriente Médio. Nessa perspectiva, não há conexão histórica entre a guerra de Bush e o 11 de setembro. As declarações de Wolfowitz desmascaram as duas narrativas e, por isso, devem ser esterilizadas. Os EUA fizeram a guerra para reformar o Estado saudita, de modo a alinhá-lo, integralmente, a Washington. As tropas americanas não são "exércitos iluministas", mas forças de ocupação que instalam protetorados militares. A guerra de Bush não poderia ser feita sem o trauma do 11 de setembro de 2001. Os atentados de Osama Bin Laden em Nova York entregaram a ideólogos fanáticos como Wolfowitz as chaves da política externa da "nova Roma". À sombra da "guerra ao terror", esse grupo político arrasta o mundo para uma dinâmica trágica de conflitos e atentados terroristas, para uma confrontação sem sentido entre o Ocidente e o islã. Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional". Texto Anterior: Frases Próximo Texto: João Felicio: Por uma reforma que amplie direitos Índice |
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