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São Paulo, sexta-feira, 06 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A grande mentira e os intelectuais engajados

DEMÉTRIO MAGNOLI

Há uma semana, o subsecretário de Defesa dos EUA, Paul Wolfowitz, concedeu uma entrevista explosiva, na qual confessou que as armas de destruição em massa não foram o verdadeiro motivo da invasão do Iraque. Washington usou esse argumento por "razões burocráticas". Nas suas palavras: "Chegamos à conclusão de que as armas de destruição em massa eram o único ponto com o qual todos concordariam".
Qual foi, então, a causa da guerra?
"O verdadeiro motivo passou quase despercebido, mas é enorme: a queda de Saddam permitirá aos EUA retirarem suas tropas da Arábia Saudita, uma presença que se constitui numa das principais queixas da rede terrorista Al Qaeda. O simples fato de retirar esse peso das costas dos sauditas abrirá a porta, por si só, para um Oriente Médio mais pacífico e seguro".
A Arábia Saudita, com um quarto das reservas mundiais e uma capacidade ociosa de extração de 3 bilhões de barris por dia, tem a chave dos preços do petróleo. Mas a monarquia saudita, essa tradicional aliada dos EUA, atravessa uma crise dilacerante. Desde a primeira Guerra do Golfo, em 1991, as tropas e bases americanas em território saudita se tornaram a principal bandeira da jihad de Osama Bin Laden. O líder terrorista tem as suas mais sólidas bases de apoio financeiro fincadas em significativa parcela da elite política e religiosa saudita, que se move no quadro da seita islâmica puritana dos wahabitas.
Desde o 11 de setembro de 2001, Washington exige que a monarquia saudita corte o cordão que liga essa elite à Al Qaeda. Mas a repressão exigida pode desencadear a implosão do Estado saudita. A derrubada de Saddam Hussein destinava-se a assegurar o controle americano sobre as reservas de petróleo do Iraque, que é condição para enfrentar a tormenta na Arábia Saudita.
A retirada das tropas americanas em território saudita abre caminho para que a monarquia conduza a repressão aos radicais wahabitas sem aparecer, diante da população, como uma agência da vontade de Washington. Os recentes atentados em Riad mostram que os radicais wahabitas e a Al Qaeda decidiram tomar a iniciativa. O Estado saudita já entrou em convulsão.


A "nova Roma" instalou um protetorado militar no Iraque e opera para reorganizar a geopolítica do Oriente Médio


Wolfowitz é um dos principais ideólogos dos neoconservadores republicanos, que desde o 11 de setembro definem a política externa da administração Bush. As suas declarações evidenciam a autoconfiança arrogante dessa corrente, pois ele disse aquilo que não poderia ser dito: Washington mentiu deliberada e sistematicamente para os cidadãos americanos e a ONU, inventando um pretexto destinado a legitimar a guerra no Iraque. Sob a cobertura desse pretexto, a "nova Roma" instalou um protetorado militar no Iraque e opera para reorganizar toda a geopolítica do Oriente Médio. Esse empreendimento neo-imperial atinge a precária estabilidade do mundo árabe e muçulmano, alimentando a fonte do fundamentalismo e difundindo as sementes do terrorismo.
A monumental inconfidência de Wolfowitz reverberou no Parlamento britânico, onde se articula um inquérito sobre os motivos alegados pelo gabinete de Tony Blair para ir à guerra. Até mesmo nos EUA, parlamentares começam a questionar abertamente as justificativas do governo e os documentos de inteligência que as sustentaram. A grande mentira, repetida todos os dias na mídia global, está em via de desmoronar.
Mas a entrevista do ideólogo falastrão teve pequena repercussão na mídia e praticamente não atingiu a opinião pública mundial. A cortina de silêncio que a acompanhou decorre da renúncia dos intelectuais a analisar objetivamente a guerra de Bush. Desde o 11 de setembro, a opinião pública está à mercê de formadores de opinião que se engajaram na produção de narrativas puramente ideológicas sobre a política externa de Washington.
Num dos pólos opostos do espectro político encontram-se os intelectuais engajados na legitimação da política dos neoconservadores republicanos. Eles explicaram que, com ou sem armas de destruição em massa, o Iraque devia ser invadido, pois os EUA decidiram-se a empreender a obra iluminista de difusão dos valores democráticos do Ocidente no mundo árabe e muçulmano. Sob a perspectiva desses intelectuais, a fabricação da grande mentira não tem importância, pois o virtuoso fim suposto justifica os meios tortos.
No outro extremo do espectro político encontram-se os intelectuais fascinados pelo terror, que saudaram aberta ou veladamente os atentados de 11 de setembro. Eles explicaram que a política externa de Bush é, simplesmente, a continuidade do "imperialismo americano": os EUA pretendem "roubar o petróleo do Iraque" e, depois, invadir um a um os países do Oriente Médio. Nessa perspectiva, não há conexão histórica entre a guerra de Bush e o 11 de setembro.
As declarações de Wolfowitz desmascaram as duas narrativas e, por isso, devem ser esterilizadas. Os EUA fizeram a guerra para reformar o Estado saudita, de modo a alinhá-lo, integralmente, a Washington. As tropas americanas não são "exércitos iluministas", mas forças de ocupação que instalam protetorados militares.
A guerra de Bush não poderia ser feita sem o trauma do 11 de setembro de 2001. Os atentados de Osama Bin Laden em Nova York entregaram a ideólogos fanáticos como Wolfowitz as chaves da política externa da "nova Roma". À sombra da "guerra ao terror", esse grupo político arrasta o mundo para uma dinâmica trágica de conflitos e atentados terroristas, para uma confrontação sem sentido entre o Ocidente e o islã.

Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional".


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