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DEMÉTRIO MAGNOLI
Thuram, Le Pen e nós
ZIDANE OFERECEU uma aula
de futebol ao arrogante escrete brasileiro. O zagueiro Thuram, seu companheiro de equipe,
deu uma lição de política a Jean-Marie Le Pen, o líder da Frente Nacional francesa, que reclamara do
"excesso de negros" na seleção de
seu país. "Não sou negro, sou francês. Le Pen deveria saber que, assim como existem negros franceses, existem loiros e morenos, e
não são convocados para a seleção
por sua cor, mas por serem franceses."
Thuram foi adiante: "Ele quer
ser presidente e não conhece a história do país, isso é grave e surpreendente". O chefe político dos
racistas provavelmente exasperou-se com essa resposta. As marchas do seu partido portam o estandarte de Joana D'Arc e cantam
a glória da "França eterna", fundada pela conversão de Clóvis 1º ao
catolicismo, em 496. A história da
França, na visão de Le Pen, é a narrativa romântica do encontro de
uma "raça", os francos, com uma
religião.
A França de Thuram é fruto de
outra história, que cultiva como
seu monumento da memória a revolução de 1789. "Se alguém vir o
Le Pen por aí, diga que, se ele tem
algum problema em ser francês,
nós não temos. Viva a França! Mas
não a França que Le Pen quer, e
sim a França verdadeira." Essa
"nação verdadeira" é a que inscreveu na Constituição de 1795 o princípio do "direito da terra": são franceses todos os que residem e pagam impostos na França.
Le Pen "tem algum problema em
ser francês", pois é um apóstolo do
"direito do sangue". Ele identifica
os "estrangeiros" pela cor da pele e,
nesse sentido, aproxima-se do
multiculturalismo americano. Nos
EUA, a "gota de sangue" separa as
pessoas em categorias imiscíveis,
que funcionam como nações dentro da nação: "brancos", "afro-americanos", "nativos", "hispânicos" e "asiáticos". O princípio jurídico do "iguais, mas separados",
base da discriminação legal no passado, revelou a sua persistência nas
"políticas de reparação" que varreram o país nas décadas de 70 e 80.
Ser francês, para Thuram, é ter
direitos iguais aos de todos, o que
se expressa pelo acesso universal
aos serviços públicos. A percepção
de ruptura desse contrato nacional
provoca protestos, às vezes distúrbios. Nos EUA, as imagens dos pobres de Nova Orleans, deixados para trás durante a inundação, provocaram recriminações, não escândalo ou revolta. No país das cotas,
desamparo e privilégios "raciais"
seletivos andam juntos.
"Sou afro-americano", talvez
respondesse um Thuram dos EUA,
referendando parcialmente o rótulo de "estrangeiro" que Le Pen lhe
pregava. Mas não foi o que ele disse. O Brasil deve prestar atenção à
aula de Thuram, mais que ao futebol de Zidane.
magnoli@ajato.com.br
DEMÉTRIO MAGNOLI escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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