São Paulo, segunda, 6 de julho de 1998

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A guerra paulista

BORIS FAUSTO
A denominação de guerra paulista para a revolução de 1932 (9 de julho), corrente na época, dá bem idéia da intensidade do confronto armado, inédito na história brasileira, entre o maior Estado da Federação e o poder central.
O entusiasmo com que a população de São Paulo se envolveu no conflito se refletiu no grande número de livros publicados sobre o tema, logo após a derrota. Esses livros são quase todos dedicados a realçar os brios paulistas diante das arbitrariedades do governo provisório, os feitos de combate, a suposta ou real traição de aliados etc.
Com o correr dos anos, à literatura de exaltação produzida no calor da hora, opôs-se uma interpretação inspirada nos pressupostos do marxismo. A revolução de 1932 teria sido um movimento da oligarquia paulista, apeada do poder, cujos interesses, vinculados à agricultura de exportação, tinham sido atingidos por uma nova ordem imposta pelo governo Vargas. A bandeira de luta pela constitucionalização do país, pelas liberdades democráticas, não passaria de instrumento ideológico -ou seja, um véu mistificador, a ocultar os reais interesses em jogo.
Esse enquadramento, na sua atraente simplicidade, não dá conta do episódio de 1932. A guerra paulista tinha duas faces: uma voltada para o passado e outra para o futuro. Na primeira, estampava-se, de fato, sua vinculação com a velha política regional e com os interesses do que se convencionou chamar de burguesia cafeeira. Na segunda, surgia o desejo de que uma ordem constitucional, com a garantia das liberdades civis e políticas, fosse instalada no país. Esse desejo refletia uma crença política e não necessariamente interesses materiais.
O problema da elite paulista daqueles anos, sustentada pela classe média letrada, reside no fato de que ela não possuía nem uma estratégia nem um discurso para incorporar à cidadania as massas urbanas que começavam a ganhar significado. O getulismo tinha ambas as coisas. Combinou a repressão à esquerda com o enquadramento dos sindicatos; os apelos simbólicos aos "humildes" ou, conforme as circunstâncias, aos "trabalhadores do Brasil", aliás de enorme significado, com vantagens materiais proporcionadas aos trabalhadores urbanos.
A força da estratégia dos vencedores se revela em vários aspectos: não por acaso a memória de Getúlio se mantém viva nas classes populares através das gerações; a estrutura corporativista da chamada Era Vargas permanece até hoje de pé, em muitos pontos, defendida pelos remanescentes do velho populismo e não só por eles.
No campo oposto, a face de 1932, voltada para o passado, converteu-se em história. Mas a face voltada para o futuro merece ser revalorizada. Duas décadas de autoritarismo militar, seguidas de um esforço que ainda não se completou no sentido de se consolidar no país o regime democrático, nos indicam a justeza dessa revalorização.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.



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