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JOÃO SAYAD
A localização do inferno
Na missa de domingo, durante o
sermão, o padre perguntou
ameaçadoramente: onde é o inferno?
A Flórida foi atingida no período de
duas semanas por dois furacões com
ventos de quase 200 km/h, que destruíram tudo. Milhares de pessoas
perderam suas casas. O inferno está na
Flórida?
O serviço meteorológico prevê furacões com antecedência suficiente para
que as as pessoas saiam da região.
Houve poucas mortes. E o governo
americano está transferindo recursos
financeiros para a recuperação da infra-estrutura e apoio à reconstrução .
O inferno não está na Flórida.
Maria ("Cheia de Graça", filme colombiano) ficou grávida e precisa de
dinheiro. Não consegue emprego na
cidade onde mora. Arranja um serviço de "mula", ingere 24 pacotinhos de
cocaína e toma um avião para Nova
York. A Imigração Americana suspeita, mas não pode fazer um raio-x porque Maria está grávida. Maria passa
pela alfândega e consegue entregar a
droga. Os traficantes quase matam a
Maria -que resolve ficar como imigrante clandestina nos Estados Unidos, o maior mercado para a cocaína
da Colômbia. Para ela, Nova York, rica, com prédios, carros e cheia de luzes, "es perfecta". A Colômbia é o inferno.
Onde está, de fato, o inferno -na
Colômbia, sem empregos, ou em Nova York, importadora de drogas?
A África subsaariana vive, freqüentemente, crises de fome e falta de abastecimento. Organizações internacionais se mobilizam para levar comida a
essas regiões. Mas guerrilhas e burocracia acabam impedindo que a comida chegue; crianças e adultos morrem
de inanição. Além disso, o continente
africano é a vítima principal da Aids.
Existem formas de evitar, remédios
para aumentar a sobrevida dos aidéticos. Falta dinheiro. Estamos mais perto do inferno.
No Brasil, há muito tempo, temos
pessoas dispostas a trabalhar e coisas
importantes que precisam ser feitas
-casas, pontes, portos, estradas. O
que precisa ser feito não dá lucro. O
governo alega que não tem dinheiro
porque paga juros altos. Inferno é a
falta de dinheiro?
As favelas do Rio e a periferia de todas as grandes cidades do Brasil são
antros de violência e do comércio de
drogas. Nas ruas de São Paulo, durante a madrugada, mendigos são mortos
a pauladas. É aí o inferno?
O inferno está na escola russa onde
centenas de crianças foram seqüestradas no primeiro dia de aula por terroristas tchetchenos e foram mortas?
Nas prisões do Iraque, entre prisioneiros torturados?
O que é exatamente o mal? Santo
Agostinho: o mal é a ausência de Deus
(como Deus pode estar ausente de algum lugar, se está em todos os lugares?).
Hannah Arendt: o mal é trivial, "mixo", o fazer sem pensar, acostumar-se
com a crueldade, considerada natural,
inevitável. O mal é o desleixo do torturador obediente como Eichmann, ou
a rigidez dos burocratas que estão
apenas cumprindo ordens ou fazendo
o que "precisa ser feito"? O mal é o fanatismo dos homens-bomba, dos donos da verdade? "O mal são os outros?"
João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
jsayad@attglobal.net
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