São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Farmácia (im)popular

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

A preocupação com o acesso à medicação é legitima e atende necessidade premente, pois a maioria dos usuários do setor público não tem condição de adquirir os remédios prescritos. Entretanto, mais uma vez, o governo comete erro de estratégia, criando, com a Farmácia Popular, uma estrutura insuficiente, com despesas consideráveis -tentando duplicar o que já existe e está disponível em mais de 60 mil centros de saúde e nas 53,9 mil farmácias distribuídas pelo país.
Mais uma vez se confunde (talvez por razões de marketing) política pública com construção ou locação de prédios, quando, na realidade, dever-se-ia implementá-la através de programa que utilizasse a estrutura já existente com economia de gastos e possibilidade de universalização, o que não ocorrerá jamais nesse novo projeto, que, mesmo multiplicado por dez, terá 170 farmácias -uma gota d" água no oceano de necessidades do país.
A proximidade, nos centros de saúde, entre o médico que receita e a farmácia do próprio posto que fornece, ambos sob a mesma direção, pode harmonizar uma ação com a outra, tornando possível a dispensação correta otimizada e com menor custo.
Esse procedimento ocorreu, durante a década de 90, no Hospital Pérola Byington, em São Paulo. Todas as mulheres que freqüentavam seus ambulatórios recebiam na farmácia do hospital, gratuitamente, os remédios prescritos com as explicações necessárias. As farmácias comerciais também poderiam ser utilizadas para esse tipo de dispensação gratuita e até para outras ações de saúde, se as transformássemos -com um movimento de volta ao futuro- em braço descentralizado do sistema de saúde, em que o farmacêutico estivesse presente e atuante, com orientação na dispensação dos medicamentos e acompanhamento de tratamentos e com alguma delegação, para a realização de procedimentos mais simples, na prevenção e detecção de doenças.
Existe um projeto de lei na Câmara Federal (PL 2.127, de 2003) exatamente nesse sentido. Para que isso se concretize é só dar-lhe caráter de urgência.


O comportamento político entrópico de destruir o que vem de governo anterior, infelizmente, continua inabalado

A Farmácia Popular venderá remédios prejudicando de forma inexplicável a distribuição gratuita. Existem várias declarações dos laboratórios públicos de que não têm condições de supri-las sem reduzir o fornecimento para as unidades públicas de saúde. Além disso, essa dispensação gratuita já se faz, de modo incipiente, mas progressivo e sério, nos centros de saúde, através de um programa denominado Cesta Básica de Medicamentos, que precisa e pode ser ampliado. Mas o comportamento político entrópico de destruir o que vem de governo anterior, infelizmente, continua inabalado.
Tudo ao gosto da moda, com a grife Duda Mendonça: construir, inaugurar, deixar marca física e fazer tantas pirotecnias quanto possível. Com penduricalhos como esse, tem se deixado de fazer o que é essencial para a implementação de uma política de medicamentos correta e sustentável. Perdeu-se na década de 80 a oportunidade de independência em sais básicos, abortando o Projeto Codetec, da Unicamp, e perdeu-se na década de 90 a oportunidade de introduzir salvaguardas vitais na Lei das Patentes. As indústrias farmoquímicas brasileiras fecharam: tínhamos mais de cem, temos hoje menos de 50; e a Índia, de quem compramos agentes ativos, tem mais de mil.
Hoje, ao lado de uma estratégia correta de distribuição e dispensação, deveríamos estar trabalhando em duas outras direções: 1) incentivo à produção interna de sais básicos e à indústria farmoquímica nacional, para baratear efetivamente os medicamentos no Brasil; e 2) término da ociosidade e ampliação das plantas dos laboratórios oficiais, para o atendimento gratuito de toda a necessidade da rede pública de saúde, o que seria um passo além dos acertados genéricos, que, comprovadamente, não atendem a população mais carente. A Fiocruz deu um passo nessa direção.
Precisamos urgentemente de uma política nacional de medicamentos à altura das necessidades e do interesse do povo brasileiro; uma política que, além de oferecer acesso a todos, gere novos empregos e desenvolvimento científico e tecnológico.
Não se constroem políticas públicas sérias com penduricalhos pirotécnicos pré-eleitorais como esse e a desnecessária Hemobras, para citar apenas dois exemplos recentes.

José Aristodemo Pinotti, 69, deputado federal pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia da USP e presidente do Instituto Metropolitano de Altos Estudos. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).

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