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TENDÊNCIAS/DEBATES
Voto
ANNA VERONICA MAUTNER
Vejo hoje pessoas caminhando sem sorriso, sem fé e sem esperança, rumo a uma máquina para apertar os botões
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Penso nas eleições de hoje com
enorme interesse, mas sem nenhum entusiasmo. Uma falta de fé paira
no ar. Não sei explicar esse paradoxo.
Desconfio de uns tantos fatos, especialmente do conteúdo dos discursos políticos. Exemplo: percebo um hiper-realismo, próprio do "economês", linguajar mais frequente. A linguagem sintética própria das ciências mais leva à formulação de dúvidas do que aos escaninhos da fé e da confiança. Discurso
científico não é entusiasmante.
A procura incessante de transparência de novo nos leva à duvida, a pesquisar e questionar. Compreender, perceber é bom e eu gosto. Mas exagero pode
provocar mudança na qualidade. De
tanto desejarmos transparência nos
atos públicos e o conhecimento dos
meandros das razões dos políticos, perdemos o contato com o fato. Perde-se a
possibilidade de crer. Afastamo-nos das
ilusões. Ilusão não é obrigatoriamente
mentira, apesar de muitas vezes o ser. Se
houvesse bula de ilusão, ela conteria ingredientes como desejo, esperança e a
presença do futuro no presente.
Nada mais humano do que a aptidão
para elaborar profecias, róseas ou cataclismáticas, a partir de percepções. O
pensamento delirante compõe também
a alucinação. Ilusão "do bem" nos deixa
continuar desejando e esperando enquanto vivemos o dia-a-dia.
Para eleger um líder, há que mobilizar
as ilusões e sair à procura de candidatos
que se pareçam com nossas ilusões. Este
é o nosso momento, o da procura. Temos que eleger líderes para várias esferas de poder da vida pública. Estamos
todos, candidatos e eleitores, mergulhados até o último fio de cabelo em argumentos à procura de provas. Não é hora
de hipóteses. Os projetos e sonhos estão
encobertos por excessos e sobras de argumentação. E, repetindo-me, excesso
de melado lambuza. Argumentos convencem o especialista (que nós nem
sempre somos) e inebriam, obscurecendo o pensamento de nós outros leigos.
E por onde anda a "pátria amada",
que a gente gostaria tanto de amar? Perdeu-se na falta de paixão? Percebo uma
certa identidade do que escuto e das expressões faciais de eleitores com o que
vislumbro nos candidatos. Uns e outros
pecam por excesso de realismo, exagero
de informações e pela falta de ilusão.
Não que eu tenha uma exaustiva análise
do discurso dos candidatos, nem o conteúdo da motivação dos eleitores.
Exponho-me como uma esponja pouco criteriosa e nada científica. Embarco
na intuição. Não sinto entusiasmo em
volta de mim. Não percebo fé nos partidos ou nos candidatos. Vejo que, temendo a pecha de populista, ninguém
promete. Temendo a pecha de maus
eleitores, nós só desconfiamos. E vamos
mergulhados neste mundo hiper-realista de vocabulário científico e argumentações bem estruturadas, cheio de números, datas e estatísticas.
Neste meio de pouca emoção, falta
misericórdia, amor à pátria, respeito ao
outro. Procura de exatidão não ofende,
mas, em determinados momentos, esteriliza. As campanhas detalham como
as poderosas instituições nos monitoram. O FMI não ama, muito menos ama
o Banco Mundial, ou o mercado, ou o
Federal Reserve. Ficamos abúlicos diante dos pareceres e relatórios que essas
instituições publicam. Mas elas afinal
foram criadas para gerar essas referências, e elas existem para monitorar.
Tudo isso traz uma grande vantagem:
suas posturas assertivas são xeque-mate
a possíveis salvadores da pátria. À pessoa dos candidatos resta simpatia e carisma. Retaguardas especializadas na
construção de imagens se movimentam. São candidatos reverberando argumentos e lutando para passar incólumes pela exigência de transparência.
Eles deixam de ser gente igual a nós, que
não temos marqueteiros nos burilando.
Junto com os assessores, porta-vozes e
institutos de pesquisa, criam as "pessoas" do candidato. A mídia apresenta o
"making of" (construção), muitas vezes
ao mesmo tempo que o fato.
Essa visão concomitante de fotografia
e raio-X funciona como um banho de
água fria na relação eleitor-candidato. O
que resta ao eleitor? Não adianta simplificar, metendo pau nos marqueteiros e
nas instituições que nos monitoram de
longe, lá do sossego do Primeiro Mundo. Já sabemos a receita para construir o
candidato que as pesquisas dizem que
nós queremos. Sabemos também, através das pesquisas qualitativas e quantitativas, que a nossa voz é ouvida. Talvez
mais do que pelas urnas.
"O candidato tem que usar terno; para
olho azul, camisa azul; dentes têm que
ter jaquetas". E aí, alfaiates, dentistas
entram em ação. Seus nomes são também divulgados. Some o palco. Os bastidores estão à vista. Os atores trocam
de roupa em público. O cenário é mudado diante de nós. Assim estamos: anestesiados, intoxicados, impregnados de
tanto saber tudo de tudo.
Esse desnudamento, essa apresentação das entranhas da vida em nome da
ciência e da transparência será verdade
ou é só mais uma imagem? Acompanho
diariamente a apresentação de argumentos sobre assuntos nos quais não
sou especialista, acompanho o dia-a-dia
da construção dos nossos líderes, acompanho pesquisas que me dizem o que
penso e prefiro; e chego a este triste momento desprovido de mistério.
Vejo hoje pessoas caminhando sem
sorriso, sem fé e sem esperança, rumo a
uma máquina para apertar 25 vezes os
botões, para maior transparência da
chegada dos resultados. Essa máquina,
que poderia ser a metáfora da esperança, virou uma chata. Votamos no mais
realista? Naquele que, através de sua total transparência, nos entedia menos?
A máquina que acionaremos será
muito mais para dizer quem nós não
queremos do que a afirmação da esperança de que o escolhido faça o que queremos.
Anna Veronica Mautner, psicanalista, é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo e colunista mensal do Folha Equilíbrio.
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