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São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2003

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BORIS FAUSTO

Hegemonias

Nas últimas décadas, enquanto o poder unilateral dos Estados Unidos se afirma, autores de diferentes tendências vêm anunciando o fim da hegemonia americana. Por exemplo, um autor marxista, Giovanni Arrighi, no prefácio de "O Longo Século 20" (1994), fala de um processo histórico definido pela ascensão, expansão e derrocada do sistema norte-americano de acumulação de capital ao longo do último século e meio.
De fato, os sintomas de crise não são poucos, indo da economia -veja-se o enorme déficit na conta corrente dos Estados Unidos- à sociedade, com destaque para um crônico desemprego, que poderá resistir até mesmo a uma nova onda de expansão econômica.
Na política externa, a partir da desastrosa Guerra do Vietnã, que resultou na morte de 50 mil americanos e de 1 milhão de vietnamitas, as ações militares dos Estados Unidos exibem vários fracassos, como demonstra o caso da Somália e provavelmente o do Afeganistão e o do Iraque. O 11 de Setembro destruiu a crença na inviolabilidade do solo americano, enquanto a luta contra o terrorismo se revela longa e difícil.
Além disso, se a hegemonia tem uma vertente de coerção e outra de consenso, esta última foi abalada, seja pelas restrições impostas ao unilateralismo pelos países europeus, seja por um sentimento antiamericano que se alastra no mundo todo, embora a cultura de massa e o padrão de consumo ianque estejam enraizados por toda parte.
Mas convém não decretar tão facilmente o fim da hegemonia. Em primeiro lugar, pela razão óbvia de que os Estados Unidos alcançaram um triunfo maior ao saírem vencedores da Guerra Fria, liquidando em seu proveito uma bipolaridade de muitas décadas. Afora isso, o pais continua a ser, de longe, a maior potência econômica mundial, deixando ainda muito para trás, no campo do poder militar, qualquer nação ou bloco de nações.
A história do mundo, ao menos até hoje, revela que, na crise de hegemonia de uma potência, navega a emergência de outra, como se viu acontecer no processo de declínio da Grã-Bretanha e de ascensão dos Estados Unidos, com a interposição temporária da Alemanha. Quem seria hoje o novo poder hegemônico em marcha? É impossível afirmar. O Japão, que Arrighi apontou equivocadamente como forte candidato, patina na recessão. A China tem atualmente taxas de crescimento espetaculares, mas, mesmo que as mantenha, graças em boa medida às inversões americanas, está a uma distância imensa do poderio econômico e militar ianque.
Dividida entre opções internas, às voltas com os problemas da absorção de novos membros, nada disposta a construir uma força militar poderosa -sendo a França uma voz isolada-, a União Européia também não parece ter uma vocação hegemônica.
Isso nos faz pensar na hipótese de um mundo sem hegemonias, com muitas polaridades, conferindo um amplo espaço de atuação a organismos internacionais de que uma ONU reformulada poderia ser o núcleo central. Hipótese desejável, não descartada, mas infelizmente muito difícil de realizar-se.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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