São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ensaio sobre a transparência

CLAUDIO LUIZ LOTTEMBERG


Imagine um Estado pesado, com natureza licitatória lenta, querendo atuar com qualidade num setor complexo como a saúde

FALA-SE muito em transparência hoje no Brasil. No mundo corporativo, no cenário político e até nas relações pessoais pede-se, cobra-se transparência. Mas o fato é que transparência deixou de ser um processo de observação cristalina para assumir um discurso de políticas de averiguação de custos engessadas que pouco ou quase nada retratam as necessidades de populações distintas.
E, em nome de um cenário confuso, isso vem ocultando, na saúde, dados positivos das organizações sociais e vem servindo como uma bandeira jurídica que, no mínimo, mereceria um melhor entendimento, pois as leis, em tese, são criadas para aprimorar a dinâmica do entendimento social, e não para alimentar uma indústria que se afasta progressivamente das necessidades dos cidadãos.
Transparência em saúde é, sim, o custo de cada processo. Mas é, sobretudo, o entendimento pleno de como funciona, como atende, e como beneficia o cidadão. Alguém com justa e adequada formação tem questionado esses valores da assim chamada transparência?
O SUS é uma referência global em termos de eqüidade social, mas ainda deixa muito a desejar nos quesitos integralidade, universalidade e mesmo qualidade. Conceitualmente, apresenta inúmeros atributos, mas, na prática, ainda merece grandes aprimoramentos. A política de Estado tem evoluído no sentido de encontrar respostas a tais necessidades.
Quando São Paulo cria organizações sociais e o governo federal ecoa com propostas com fundações é porque, dentro dos grupos técnicos, com um certo e compreensível tempero político, existe a percepção de que algo tem que ser feito a mais para de fato levar a saúde a toda a população.
Discute-se sua natureza jurídica, mas não a inserção da excelência e dos benefícios do modelo de gestão de algumas entidades privadas na prestação dos serviços. Isso em nada nega os princípios propostos pelo SUS, que preconiza o direito de todos e o dever do Estado de garantir a saúde, mas não explicita quem deve prestá-la.
Imaginar que possamos transformar o sistema em função das necessidades da saúde, deixando de reconhecer que há outras formas de garantir a transparência, significa menosprezar o conhecimento da sociedade.
A inserção da iniciativa privada em modelos mais avançados que o nosso e de maior justiça social não é novo. A Espanha o faz há muitos anos, como acontece em outros países europeus, onde os indicadores de qualidade de vida e de desempenho são superiores aos nossos e aos dos EUA.
Isso tem sua lógica, na medida em que essas sociedades se preocupam também com os custos, mas se acostumaram a lidar com dados sobre os quais quase nada é debatido por parte de nossos mandatários da esfera política. A esfera técnica se esforça e demonstra esse conhecimento, mas, no âmbito político, isso em nada parece afetar a consciência dos que se candidatam aos cargos majoritários. Para eles, trata-se da terceirização da saúde, e não de um debate que se pauta pelo entendimento daquilo que pode ser mais efetivo e eficiente.
Ocorre, portanto, um afastamento das necessidades reais com foco no pior dos valores, que é baseado no dinheiro. E partindo de quem, a rigor, defende a saúde como direito social.
O grau de complexidade de uma organização de saúde é enorme e só tende a crescer, por conta de fatores como envelhecimento da população, novas tecnologias e o papel da indústria farmacêutica. Quanto mais complexo um sistema, maior o numero de conflitos. Imagine um Estado pesado, com natureza licitatória lenta, com rigidez de contratações de pessoal e, portanto, sem vocação para lidar com essas demandas, querendo atuar com um mínimo de qualidade.
Aqueles que acreditam na capacidade do Estado de exercer esse papel fogem por completo do conhecimento dos mínimos quesitos de qualidade em saúde, em que o tempo e a agilidade são absolutamente vitais.
Imaginar que a saúde pode esperar no dia-a-dia ou que as contratações podem se dar ao luxo de aguardar pela obsolescência quase imediata de produtos fragmentados é o mesmo que premiar a incompetência que limita a capacidade criativa de quem deve a rigor ser monitorado dentro de indicadores de eficiência.
O Brasil é um país enorme, com grandes heteregoneidades. Seus habitantes têm necessidades singulares. Aqueles com aptidão a ajudá-los, se não estimulados por cenários competitivos, estarão fadados a não encontrar motivação para o exercício de suas funções.
Albert Einstein defendia que, em termos de justiça e verdade, não existiria diferença entre pequenos e grandes problemas: "Para assuntos relativos ao tratamento das pessoas, todos são importantes". Portanto, trata-se de ver aquilo que é melhor ao cidadão.
E, aí, basta a leitura dos indicadores.
Essa é a verdadeira transparência.


CLAUDIO LUIZ LOTTENBERG , doutor em oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina, é presidente do Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. Foi secretário municipal da Saúde em São Paulo (gestão Serra).

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