São Paulo, segunda-feira, 06 de novembro de 2000

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Miguel Reale, 90

CELSO LAFER


Com sua síntese humanista, clara e elegante da filosofia do direito, Miguel Reale é insubstituível


Miguel Reale completa hoje 90 anos no pleno vigor de sua inteligência privilegiada e no sempre atualizado interesse pelo Brasil e pelo mundo. No seu percurso, de 1940 a 1980, Miguel Reale foi o catedrático de filosofia do direito da Faculdade de Direito da USP, disciplina que renovou, aparelhado por um grande saber e com ampla e merecida ressonância nacional e internacional. Dessa disciplina tenho a honra de ser hoje, na mesma faculdade, o titular.
No que tange a essa responsabilidade, diria que, no campo da filosofia do direito, aplica-se a Miguel Reale o que disse em matéria de política externa Lauro Müller sobre Rio Branco, ao assumir o Itamaraty: é uma sucessão imposta pelas circunstâncias, não uma substituição. Miguel Reale é insubstituível. Isso em razão do alcance e da originalidade de sua reflexão jusfilosófica, que é um dos temas estruturadores do seu pensamento. É a importância de sua contribuição nessa área que me proponho a realçar.
A filosofia do direito, como aponta Norberto Bobbio, não é obra de filósofos, pois não é uma filosofia aplicada. É obra de juristas com interesses filosóficos que pararam para pensar o significado do direito, para recorrer ao que diz Hannah Arendt sobre a fenomenologia do pensar. Os filósofos do direito pararam para pensar porque se viram confrontados com problemas concretos, para os quais, no século 20, não encontravam respostas apropriadas no direito positivo nem no clássico paradigma do direito natural.
Entre esses problemas estão o de como identificar o que é o direito, que está em permanente mudança; qual é a relação entre as normas jurídicas e os comportamentos das pessoas numa sociedade, quando existe um desajuste entre o direito formalmente válido e a realidade social; e qual é a justiça da legalidade, quando essa, na melhor das hipóteses, é uma das possíveis expressões do justo.
Daí a importância que Reale atribui à procura do concreto tanto pelos filósofos quanto pelos juristas.
A experiência é uma categoria forte em Miguel Reale, que, desde o início de seu percurso intelectual, teve como propósito teorizar a vida e viver a teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação. O alcance epistemológico da experiência foi por ele elaborado de maneira abrangente em "O Direito como Experiência" (1968) e "Experiência e Cultura" (1977). Recentemente, no seu livro "Variações" (1999), Reale sublinhou que o ato de experienciar envolve a experiência a "parte subjecti", bem como aquilo que se põe afinal como experienciado, ou a experiência a "parte objecti", realçando que experiência, do latim "experiri", significa também testar, pôr à prova. A experiência guarda um sentido originário de vivência direta da realidade, mas é um ato intersubjetivo que resulta da pluralidade do mundo.
Daí, para os juristas com interesses filosóficos, o poder-dever de comunicar os seus resultados reflexivos. É nesse poder-dever que está lastreada a filosofia do direito de Miguel Reale, que provém de uma reflexão sobre os problemas concretos colocados pela experiência jurídica no mundo contemporâneo e muito especialmente sobre os do inter-relacionamento entre as normas, os fatos sociais e os valores.
A maneira de tratar os problemas da experiência jurídica e a própria amplitude da filosofia do direito variam em razão da postura dos juristas com interesses filosóficos, que foram construindo esse campo do conhecimento como uma investigação teórica baseada numa atividade prática. Para Miguel Reale, o campo da filosofia do direito é abrangente, pois o tridimensionalismo trata da dialética entre fato, valor e norma.
Um dos pontos de partida dessa visão é a natureza crítica da filosofia, por ele entendida como um sempre renovado questionamento e uma indagação de pressupostos. Seu pensamento dos anos 50 foi incorporando, nos anos 60 e 70, da já mencionada reflexão sobre a experiência, que deu novo conteúdo à sua análise da hermenêutica jurídica.
Também as suas instigantes e originais pesquisas sobre a conjetura, iniciadas na década de 80 -"Verdade e Conjetura" (1983)- e inspiradas em Kant, permitiram-lhe lidar com outro rigor com a justiça como valor ordenador dos demais valores da experiência jurídica.
O outro ponto de partida da visão filosófica de Miguel Reale é a coragem intelectual de uma poderosa inteligência, que sustenta, sem ingenuidade, a capacidade sintetizadora -nomotética- do espírito apto a integrar, sem reducionismos simplificadores, a multiplicidade da experiência.
É no vigor dessa capacidade sintetizadora que reside a originalidade do tridimensionalismo, que não é uma simples e eclética verificação da correlação entre fatos, valores e normas, mas uma construção teórica de alto nível, baseada numa cosmovisão filosófica. É essa cosmovisão que me permitirei sumariar na conclusão deste texto.
Na sua propedêutica filosófica, cuida Reale do problema dos limites e alcances do conhecimento -o problema identificador do pensar moderno. Aponta a natureza crítico-axiológica do conhecimento, chamando atenção para o seu coeficiente de estimativa e para a sua circunstancialidade histórica, os quais não impedem a busca do rigor e o esforço da coerência. Para Reale, a condição transcendental dessa busca tem como base a correlação sujeito-objeto.
Na análise do sujeito, discute: a graduação do conhecimento; as relações entre filosofia e ciência; os temas da origem do conhecimento; os da essência do conhecimento; os dos métodos do conhecimento; e os das possibilidades do conhecimento. A seguir examina os objetos que o sujeito pensante conhece.
Na sua visão epistemológica, há um entrosamento dialético na relação sujeito-objeto. Ele estuda os objetos físicos; os psíquicos; os ideais, como os da matemática, que existem enquanto são pensados; e, a seguir, concentra a sua atenção nos valores.
Essa objetivação, que tem, de acordo com Miguel Reale, a pessoa humana como valor-fonte e os direitos fundamentais como horizonte, permite-lhe passar do problema do conhecimento para o da conduta. Cuida assim da relação entre a ética e a teoria da cultura a partir de uma perspectiva culturalista, afirmadora da liberdade, na concomitância da universalidade e da pluralidade das culturas e dos bens culturais individuais e sociais. Essa perspectiva busca compreender a ordenação dos valores -tão necessária para a criação e a aplicação do direito- levando em conta as constelações axiológicas trazidas pelos ciclos de cultura e pela história, concebida como autoconsciência humana.
O resultado é uma síntese humanista, clara e elegante, animada, como diria Dante Alighieri, que ele cita, por "uno amoroso uso di sapienza" que permeia com vigor o seu tridimensionalismo e que explica por que no campo da filosofia do direito ele é uma insubstituível personalidade intelectual.



Celso Lafer, 59, professor titular da Faculdade de Direito da USP e diplomata, foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (governo FHC) e das Relações Exteriores (governo Collor).




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