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TENDÊNCIAS/DEBATES
Brasileiro sem complexo de inferioridade
BETTY MILAN
Com a vitória de Lula, o ano que
passou foi um ano novo. Porque,
ainda que a elite econômica continue a
existir, já não podemos falar do Brasil
da elite e do outro, que é do povo. O país
não é mais da elite.
Queira ou não, a separação entre o
Brasil e o "Braaasilll" acabou. A campanha e a eleição nos curam da vergonha
de sermos quem somos. Isso é fundamental. Bato nessa tecla desde que escrevi "O Papagaio e o Doutor", em que a
narradora faz a sátira dos sorbonícolas
brasileiros, que sentem falta do Brasil
quando estão no exterior e falta do
mundo quando estão no Brasil.
E como é que Lula nos cura? Por um
lado, desqualificando um saber que não
teve como meta a educação para todos,
não foi democrático e, assim, esteve dissociado da vida. Por outro, acreditando
no saber que ele tem, o da escola da vida
ou da cultura do Brasil, que é pragmática, favorável ao nacional sem ser nacionalista, brincalhona sem deixar de ser
séria. Dou exemplos:
a) Na sua primeira viagem internacional, foi à Argentina. Para "deixar clara a
preferência pela América Latina". Com
isso, valorizou o continente ao qual nós
brasileiros também pertencemos.
b) Disse, em Buenos Aires, que a Argentina precisa de um "presidente ético". O pronunciamento foi considerado
inábil pela imprensa. Para Lula, a verdade importa mais que a habilidade. A sua
ética é a do samba, que é o termômetro
do país, e ela implica uma nova concepção da diplomacia. Gilberto Freyre dizia
que, para mudar a imagem do Brasil no
exterior, é preciso mudar o Itamaraty.
c) Para a viagem, usou um avião da
Embraer, e não o Airbus no qual FHC
viajava para chegar à capital americana
em oito horas. O Legacy Executive da
Embraer levou três horas a mais, só que
é um produto nacional. Lula deu ouvidos ao adágio popular: Devagar também é pressa. Dando ouvidos, ele fez
quem estava atento escutar.
d) Nos Estados Unidos, disse que estava para falar de política, e não para pedir. Como o bandeirante paulista que,
na sua viagem a Portugal, ofereceu ao
rei um cacho de banana de ouro maciço
e fez questão de nada pedir. Não dispondo de ouro, Lula ofereceu um ponto
de vista político legitimado por 53 milhões de votos. Depois, brasileiramente,
brincou, dizendo que a nossa economia
está na UTI e, por isso, escolheu um médico para o ministério. Ou seja, deu a
entender que a verba não está acima do
verbo e privilegiou o nosso estilo.
e) Como adora metáforas futebolísticas, disse ainda que o médico Palocci
ganhou a posição de "chefe da economia". Não falou da economia valendo-se do discurso dos economistas, e sim
como os comentaristas de futebol, o jogo que fez de nós os pentacampeões.
Usa as metáforas porque se formou na
escola do povo e, indiretamente, convida os brasileiros todos a entrarem nela.
f) Lula subiu a rampa do Palácio do
Planalto para receber a faixa presidencial com uma camisa de tricoline inglesa, confeccionada em Salvador. Sem
menosprezar o que vem de fora, valorizou o que é nacional. O tecido é inglês,
porém a confecção da camisa é baiana.
Com isso, inscreveu-se na tradição da
cultura popular, que, sem ser nacionalista, apropria-se brasileiramente do
que é estrangeiro.
g) A posse não se fez com a tradicional
noite de gala no Itamaraty. O novo Brasil reinventou a tradição, fazendo uma
festa popular. A lista de convidados especiais importou menos do que a lista
de pessoas que convergiram para a Esplanada. A política do novo governo é a
da inclusão. A eleição de Lula é o melhor
antídoto contra a "papagaice", que nos
condenou a desprezar o que é nacional.
Nós, agora, tendemos a valorizar o Brasil e as nossas coisas; temos auto-estima
-um auto-reconhecimento decorrente
do reconhecimento de valores reais.
A eleição de Lula é o melhor antídoto contra a "papagaice", que nos condenou a desprezar o que é nacional
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Se eu fosse economista, diria que a
eleição "agregou valor" ao país. Que somos?- perguntou durante décadas a
nossa intelligentsia, inscrevendo-se numa repetição sintomática. Se a questão
se colocou para Roberto da Matta,
Afonso Romano de Santana e Celso
Furtado, é que a identidade lhes escapava. A identidade foi impossível até que
um torneiro mecânico, um homem de
origem pobre e sem diploma superior,
recebesse o diploma de presidente da
República e proferisse, no seu discurso,
que a democracia tem sujeito: o povo.
Também a democracia aqui é diferente e ninguém duvida da nossa exemplaridade no exercício da mesma. Passamos para a esquerda (o lado do coração) sem violência e sem o ressentimento característico das esquerdas européias. Porque temos uma tradição pacifista e porque, para Lula, o "flower power" com o qual ele se elegeu é uma verdade, e não simplesmente uma tática
eleitoral. Nem os seus opositores são
contra ele. Não podem ser. Porque a sua
vitória é uma prova da maturidade política dos brasileiros, que agora se orgulham de serem quem são.
Seja qual for o governo de Lula, ele já
cumpriu um grande papel, porque nós
devemos a ele a dissolução do nosso
complexo secular de inferioridade. A
Lula e a nós mesmos, que o elegemos.
Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de
"A Paixão de Lia", entre outros livros.
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