São Paulo, terça-feira, 07 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Brasileiro sem complexo de inferioridade

BETTY MILAN

Com a vitória de Lula, o ano que passou foi um ano novo. Porque, ainda que a elite econômica continue a existir, já não podemos falar do Brasil da elite e do outro, que é do povo. O país não é mais da elite.
Queira ou não, a separação entre o Brasil e o "Braaasilll" acabou. A campanha e a eleição nos curam da vergonha de sermos quem somos. Isso é fundamental. Bato nessa tecla desde que escrevi "O Papagaio e o Doutor", em que a narradora faz a sátira dos sorbonícolas brasileiros, que sentem falta do Brasil quando estão no exterior e falta do mundo quando estão no Brasil.
E como é que Lula nos cura? Por um lado, desqualificando um saber que não teve como meta a educação para todos, não foi democrático e, assim, esteve dissociado da vida. Por outro, acreditando no saber que ele tem, o da escola da vida ou da cultura do Brasil, que é pragmática, favorável ao nacional sem ser nacionalista, brincalhona sem deixar de ser séria. Dou exemplos:
a) Na sua primeira viagem internacional, foi à Argentina. Para "deixar clara a preferência pela América Latina". Com isso, valorizou o continente ao qual nós brasileiros também pertencemos.
b) Disse, em Buenos Aires, que a Argentina precisa de um "presidente ético". O pronunciamento foi considerado inábil pela imprensa. Para Lula, a verdade importa mais que a habilidade. A sua ética é a do samba, que é o termômetro do país, e ela implica uma nova concepção da diplomacia. Gilberto Freyre dizia que, para mudar a imagem do Brasil no exterior, é preciso mudar o Itamaraty.
c) Para a viagem, usou um avião da Embraer, e não o Airbus no qual FHC viajava para chegar à capital americana em oito horas. O Legacy Executive da Embraer levou três horas a mais, só que é um produto nacional. Lula deu ouvidos ao adágio popular: Devagar também é pressa. Dando ouvidos, ele fez quem estava atento escutar.
d) Nos Estados Unidos, disse que estava para falar de política, e não para pedir. Como o bandeirante paulista que, na sua viagem a Portugal, ofereceu ao rei um cacho de banana de ouro maciço e fez questão de nada pedir. Não dispondo de ouro, Lula ofereceu um ponto de vista político legitimado por 53 milhões de votos. Depois, brasileiramente, brincou, dizendo que a nossa economia está na UTI e, por isso, escolheu um médico para o ministério. Ou seja, deu a entender que a verba não está acima do verbo e privilegiou o nosso estilo.
e) Como adora metáforas futebolísticas, disse ainda que o médico Palocci ganhou a posição de "chefe da economia". Não falou da economia valendo-se do discurso dos economistas, e sim como os comentaristas de futebol, o jogo que fez de nós os pentacampeões. Usa as metáforas porque se formou na escola do povo e, indiretamente, convida os brasileiros todos a entrarem nela.
f) Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto para receber a faixa presidencial com uma camisa de tricoline inglesa, confeccionada em Salvador. Sem menosprezar o que vem de fora, valorizou o que é nacional. O tecido é inglês, porém a confecção da camisa é baiana. Com isso, inscreveu-se na tradição da cultura popular, que, sem ser nacionalista, apropria-se brasileiramente do que é estrangeiro.
g) A posse não se fez com a tradicional noite de gala no Itamaraty. O novo Brasil reinventou a tradição, fazendo uma festa popular. A lista de convidados especiais importou menos do que a lista de pessoas que convergiram para a Esplanada. A política do novo governo é a da inclusão. A eleição de Lula é o melhor antídoto contra a "papagaice", que nos condenou a desprezar o que é nacional. Nós, agora, tendemos a valorizar o Brasil e as nossas coisas; temos auto-estima -um auto-reconhecimento decorrente do reconhecimento de valores reais.


A eleição de Lula é o melhor antídoto contra a "papagaice", que nos condenou a desprezar o que é nacional


Se eu fosse economista, diria que a eleição "agregou valor" ao país. Que somos?- perguntou durante décadas a nossa intelligentsia, inscrevendo-se numa repetição sintomática. Se a questão se colocou para Roberto da Matta, Afonso Romano de Santana e Celso Furtado, é que a identidade lhes escapava. A identidade foi impossível até que um torneiro mecânico, um homem de origem pobre e sem diploma superior, recebesse o diploma de presidente da República e proferisse, no seu discurso, que a democracia tem sujeito: o povo.
Também a democracia aqui é diferente e ninguém duvida da nossa exemplaridade no exercício da mesma. Passamos para a esquerda (o lado do coração) sem violência e sem o ressentimento característico das esquerdas européias. Porque temos uma tradição pacifista e porque, para Lula, o "flower power" com o qual ele se elegeu é uma verdade, e não simplesmente uma tática eleitoral. Nem os seus opositores são contra ele. Não podem ser. Porque a sua vitória é uma prova da maturidade política dos brasileiros, que agora se orgulham de serem quem são.
Seja qual for o governo de Lula, ele já cumpriu um grande papel, porque nós devemos a ele a dissolução do nosso complexo secular de inferioridade. A Lula e a nós mesmos, que o elegemos.

Betty Milan,
escritora e psicanalista, é autora de "A Paixão de Lia", entre outros livros.



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