São Paulo, quinta-feira, 07 de fevereiro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O protesto em busca da alternativa

CANDIDO MENDES

Porto Alegre acolheu mais de 60 mil pessoas no recém-terminado Fórum Social Mundial. Fez-se de um lastro majoritário de mocidade, abaixo de 25 anos, somado a este enxame de latino-americanos, andinos, caribenhos até, mas, sobretudo, da leva de argentinos, tascando na sua indignação o neoliberalismo como o fantasma de todos os futuros.
Aplausos parcos nas assembléias-monstro da PUC para além de 3.000 assistentes mais ratificadores do óbvio do que aplaudindo verdadeiras alternativas ao mundo que está aí. O sucesso e o pacifismo integral da manifestação levaram de volta ao aeroporto José Bové, o ferrabrás de Porto Alegre 1, e quase popular anônimo, agora, na calmaria, que é também tributária da superorganização.
O Estado e a prefeitura gaúcha tomaram conta, nacionalmente, do evento, pelo programa concreto de realizações, que rasga o que seja um outro Brasil administrado pelo PT. Lula pode até ser recebido com a nova distância, dos que o vêm como o futuro situacionismo, engendrando um dissenso à sua esquerda. Da mesma forma, o governo do Rio Grande sofre a crítica de ideologias puras, como a dos adeptos do método Paulo Freire. Confrontam o partido por não verem esta prática educacional como "tomada de consciência", mas como efetivo e determinado esforço de politização.
Faltaram as interrogações mais candentes sobre as opções de futuro, as que trafegaram nos microfones da capital, nas levas laranja dos monges budistas, dos bubus africanos, dos slogans do Che, ou nas novas camisas-protesto contra o horror argentino. Não se debateu a iminência das guerras das religiões, nem o novo estatuto antiterror, nem o conceito de "combatente ilegal" dos prisioneiros no Afeganistão, frente às Convenções de Genebra. A urgência da defesa dos direitos humanos não levantou um auditório, frente à admirável Mary Robinson, a delegada oficial das Nações Unidas. Mais ainda, o tema do fundamentalismo foi à contradição.
Combatida por uma palestina, mais se acentuava a ambiguidade da reivindicação. Para a mulher islâmica, ameaçada pela luta antiterrorista, vale mais a defesa do Islã que a identifica, ou o fundamentalismo que exigiria uma subsequente e adequada revisão crítica da cultura em que se insere? As prioridades de confronto com a globalização esperam ainda o pós 11 de setembro. Em vez de correr à frente dos novos riscos, entretanto, a sociedade civil, pelas multivozes de suas ONGs, repetiu o clássico receituário antiimperialista, como se a hegemonia ocidental de hoje fosse apenas o seu caso agravado, diante da cruzada ocidental que põe em risco um verdadeiro pluralismo, na ameaçadíssima convivência internacional.
Rigoberta Menchou falou da importância desses contatos interculturais, de periferia a periferia, sempre devolvidos pelo monopólio mediático do mundo globalizado. Nem a conversa do cidadão, mesmo com as catacumbas da internet, criou uma agenda inovadora, para além dos gurus. Por enquanto, não se avançou do protesto entrincheirado, ou mesmo obsoleto, ao esboço efetivo da alternativa.


Não se avançou do protesto entrincheirado, ou mesmo obsoleto, ao esboço efetivo da alternativa


Por mais que o professor Boaventura nos exiba uma receita "prêt-à-porter" do novo caminho, estamos por demais envolvidos no inconsciente neoliberal, e na perversão de sua esperança, ou na força de sua propaganda, para, de imediato, ir-se mais além do que a coletividade não quer como modelo. E a garantia deste avanço é sintonizar-se com as verdadeiras prioridades em Davos, Nova York ou Porto Alegre, para saber-se o que é o mundo a defender-se contra o fundamentalismo antiterror. Não passaram pelo fórum gaúcho as novas apreensões despertadas pelo pós-Afeganistão, no porte que assumirá a cruzada ocidental, a assumir o risco de erradicar com o terrorismo um legítimo e efetivo pluralismo de culturas, na presunção de que se erige uma só e estrita civilização.
Porto Alegre 3, a ter relevo, divisará o avanço do calendário do abate dos países enunciados no State of the Union do presidente Bush como, literalmente, o eixo diabólico da atualidade, o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte estão na mira do novo esforço militar, no peso dos 70% em que os americanos mantêm, num inédito apoio, a confiança no governo Bush.
Da mesma forma, o socialismo entra em ano crítico nessa Europa, que veio fazer praça de sua proposta do amanhã em Porto Alegre. Lula fará a campanha de Jospin fundindo um repúdio ao neoliberalismo. E entre nós, o PT, no encampar a esquerda praticável, busca a mesma alternativa, e expõe-se para tal, às críticas da radicalidade, vindas justamente dos seus arraiais gaúchos.
À espera do que disserem os franceses em abril do ano vindouro, e no novo pacto de reenvio de mensagens, em que a social democracia faz a média entre o partido de Jospin e o de Lula, o Brasil testará em outubro se vai às urnas tão só para o voto ou para uma opção. E a alternativa que cresça sobre a coceira do protesto, reclama um nível de ruptura em que só o PT parece bater no cravo do futuro.


Candido Mendes, 73, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.



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