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GABRIELA WOLTHERS
Uma questão de memória
RIO DE JANEIRO - Já que o Brasil não tem poder para alterar em um milímetro que seja o objetivo dos Estados
Unidos de travar a guerra contra o
Iraque, a imprensa brasileira, cuja
importância no cenário internacional é mais nula ainda, deveria pecar
pela ousadia. Poderia, por exemplo,
publicar a foto de Donald Rumsfeld
apertando a mão de Saddam Hussein toda vez que o nome do secretário da Defesa é citado.
A imagem, de dezembro de 1983,
sintetiza a hipocrisia da política externa americana. A exposição constante da cena não mudaria o cenário
mundial, mas serviria para mostrar
que, se não temos poder, pelo menos
temos memória.
Não foi um aperto de mão qualquer, daqueles que se dá apenas para
cumprir o protocolo. Rumsfeld foi um
dos mais importantes interlocutores
dos EUA no Iraque nos anos 80,
quando Saddam ainda era considerado um parceiro no Golfo Pérsico.
Nada há de novo nesta história,
mas é sempre bom lembrá-la. Principalmente agora, quando os EUA teimam em passar a impressão de que
Saddam é um desatinado que surgiu
por osmose num país longínquo. Se
há alguém que nada mudou desde
1979, quando tomou o poder por
meio de um golpe, foi ele. Era um ditador e assim permaneceu. Quem
mudou foram os EUA, antigo aliado
que agora quer ensinar o que é democracia ao povo iraquiano.
O presidente George W. Bush e seu
secretário da Defesa se horrorizam
com a possibilidade de Saddam ter
armas químicas e biológicas. Mas jogam para baixo do tapete o fato de
que foram norte-americanos como
Rumsfeld que facilitaram a obtenção
da tecnologia pelo ditador, apesar da
proibição por convenção internacional. Quando ela foi testada e aprovada contra curdos e iranianos, não
houve oposição dos EUA.
Hoje o secretário da Defesa diz
acreditar que "as pessoas no Iraque
sabem que tipo de regime Saddam lidera". Elas sempre souberam. Quem
teve um surto de amnésia que apagou 10 anos de convivência íntima foram os líderes americanos.
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