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São Paulo, segunda-feira, 07 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Em defesa da advocacia

RUBENS APPROBATO MACHADO


Quem defende o conceito de que bandido bom é bandido morto está tendo o mesmo comportamento do assassino

O clamor nacional por um combate mais efetivo ao crime organizado e a cobertura jornalística envolvendo Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, estão a merecer um posicionamento público para dirimir dúvidas sobre a missão do advogado e repor alguns conceitos que são interpretados de forma enviesada até por grupos formadores de opinião.
De início, lembremos: em um verdadeiro Estado de Direito, todo acusado tem direito à defesa, independente da gravidade do delito ou da repercussão do fato. A decisão judicial, para ser justa, passa necessariamente pelo devido processo legal, em que a amplitude de defesa é apanágio dos povos civilizados. Não se pode nem se deve confundir a figura do acusado com a de seu defensor. O advogado não defende o pecado, mas aquele tido como pecador.
A Constituição garante aos cidadãos o direito à ampla defesa (art. 5, inciso LV). Ao advogado compete a missão de assegurar o pleno exercício desse direito constitucional, ligado indissoluvelmente à cidadania. E, para cumprir fielmente a missão, o advogado se ampara nos pressupostos da lei, dentre os quais o dever de resguardar o sigilo profissional. A propósito da polêmica sobre as revistas feitas por ocasião das visitas a presos, há de esclarecer que os advogados não se negam a passar pelo detector de metais, sendo essa precaução aceita pela OAB, em defesa da sociedade, e que deve ser adotada não só em relação ao advogado, mas a todos os que trabalham na administração da Justiça.
De outro lado, para ser cumprida a lei, sem resvalar na prática ilegítima e ilegal de "revista" do advogado, propõe-se que tal revista seja feita no preso, quando for à entrevista com seu defensor. Ao término da entrevista, deve ser novamente revistado.
Quanto à remuneração, urge deixar as coisas bem claras. A advocacia, ainda que não seja uma atividade mercantilista, não tem caráter filantrópico ou de gratuidade. O profissional, por seu trabalho, há de ser remunerado. Além dos pressupostos legais e regulamentares, com a edição de Tabela de Honorários pela OAB, o código de ética determina a moderação na contratação dos honorários, não permitindo que o advogado se associe ao cliente. Como qualquer trabalhador ou profissional, o advogado há de receber remuneração pelo trabalho desenvolvido. Nunca se soube, na história das profissões, do caso, por exemplo, de um médico cirurgião perguntar a seu paciente sobre a origem do dinheiro que iria remunerá-lo.
É certo, contudo, que não se pode permitir ao profissional se acumpliciar com o cliente para a prática criminosa ou dela se beneficiar indevidamente. Os trabalhadores em geral e os profissionais não perguntam a seus patrões ou clientes de onde vem o dinheiro que os remunera. Se esta fosse condição para o exercício profissional, todas as pessoas eventualmente acusadas de crime, não só de tráfico de drogas, mas de corrupção ou sonegação, deveriam declinar a origem de seus recursos.
A lógica da vida impõe que o trabalho do profissional, sendo honesto, merece e deve ser remunerado. Cabe às autoridades fazendárias, policiais, ao Ministério Público buscar saber a origem dos recursos daqueles a quem imputam prática deliquencial. Ao cobrar honorários, o advogado não está, de forma nenhuma, compactuando com os atos criminosos atribuídos ao cliente. Interpretação diferente só pode ser levada à conta de maléfica emoção ou de demagógica interpretação provinda de pessoas despreparadas ou mal-intencionadas.
É claro que a OAB está atenta para desvios e atitudes de advogados que não se coadunam com a postura ética. Como artífice da defesa e da realização de direitos fundamentais dos cidadãos, sendo o primeiro formador de opinião, o primeiro formador de jurisprudência e da ação da Justiça, o advogado há de se impregnar de duas vertentes da advocacia: a diceologia e a deontologia. Uma voltada à defesa das prerrogativas profissionais, outra ao rígido cumprimento da ética.
Aos direitos dos advogados, soma-se a necessária conduta ética, cujo balizamento imprime dignidade à classe. Desvios nesse campo são punidos com rigor. A OAB, nesse ponto, não é e nunca foi corporativista. Obediente ao preceito constitucional do devido processo legal, a OAB pune com rigor os transgressores de normas éticas. Para ter uma pálida idéia desse rigor, basta dizer que a OAB-SP, neste ano, já comunicou a suspensão de 43 advogados e a exclusão de três. Nos anos de 2001 e 2002, a mesma seccional propôs a aplicação da 1.007 penas de suspensão e de 71 de exclusão, além de 806 de advertência e censura.
Nesse momento de conturbação, agravado pelo assassinato bárbaro de dois juízes e pela morte de inocentes, não há por que deixar de se pautar pelo equilíbrio e racionalidade. A advocacia só se legitima em seu exercício, quando trilha pelos caminhos da independência e da liberdade. Não pode a advocacia sofrer restrição, ofensa, agravo.
Preocupa a OAB a constatação de que, em setores da sociedade e até dentro do próprio meio jurídico, alguns defendem soluções extravagantes e emotivas, inclusive execuções sumárias, pena de morte, "esquadrões da morte", mais crueldade nas prisões. Essa "psicose coletiva da violência" poderá se transformar em cegueira capaz de ofuscar os caminhos civilizados do nosso próprio destino. Quem defende o conceito de que bandido bom é bandido morto está tendo o mesmo comportamento do assassino. Pretende-se, com isto, transferir a execução das mãos do bandido para as mãos do Estado. No fundo, é o mesmo ato. É aplicação da lei de talião; é a volta à barbárie, um golpe frontal contra as instituições democráticas.
Não há dúvida de que o crime organizado precisa ser combatido, com força, pertinácia, de maneira mais eficaz pelo Estado, que não pode se acovardar. A punição há de ser severa, mas com justiça. Para tanto, precisamos criar um cinturão de solidez em torno dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, particularmente deste último.
Um Judiciário claudicante, frágil, desestruturado, apático, inerte é um Poder sem poder, uma fenda no Estado de Direito. O combate ao crime organizado começa pelo fortalecimento do Judiciário, e não com um orçamento público já muito pequeno, do qual se pretende retirar parcela de valores indispensáveis ao bom funcionamento da Justiça.


Rubens Approbato Machado, 69, advogado, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).


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