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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Câmara dos Deputados deve instituir feriado nacional no dia da canonização de frei Galvão?
NÃO
De cidadãos e de santos
ROSELI FISCHMANN
A CÂMARA não deve aprovar o
projeto de lei, pois é incompreensível a decisão da Comissão de Educação do Senado de estabelecer o dia de frei Galvão por sua canonização como santo da Igreja Católica, propondo feriado nacional.
A prerrogativa dessa comissão, de
analisar projetos de datas comemorativas e feriados, deve-se à relevância
educativa das efemérides, que devem,
contudo, trazer exemplos no âmbito
da esfera pública, universal, e não do
privado, particular de uma religião.
Legislando de dentro do Estado laico que é o Brasil, e não a partir de instituição religiosa, comete o Senado
equívoco e inconstitucionalidade que
nada têm a ver com a santidade do frei
Galvão. Por ser laico, o Estado não
tem como se pronunciar sobre ser alguém santo ou aderir à decisão alheia,
pois extrapola a esfera de sua competência, que é a dos negócios humanos
na relação com o Estado, sendo impróprio que seu calendário seja invadido pelo litúrgico de alguma religião.
No afã de agradar católicos cujos
respeitáveis sentimentos estão mobilizados pela visita do papa, o Senado
Federal pratica gesto que se opõe ao
princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e, portanto,
opõe-se à democracia.
Atribui a um grupo o privilégio de
ser honrado de forma múltipla, considerando as datas católicas que já têm
caráter de feriado nacional, às quais
se acrescentaria outra, em detrimento dos diversos grupos que compõem
o quadro religioso do Brasil.
Cabe a lógica das relações presentes nos discursos de ódio ("hate
speech", estudado por juristas como
Celso Lafer e Daniel Sarmento).
Segundo os debates, uma das razões para proibir esses discursos é
que, aceitá-los, privilegiaria o direito
de expressão de um grupo em detrimento do sentimento e da identidade
de outro, que seria considerado, assim, oficialmente, inferior.
Ora, vale entender, similarmente,
que o apreço desproporcional do Estado a um grupo determinado é também símbolo de privilégio que, ao distinguir um grupo, inferioriza os demais, sendo totalmente impróprio à
democracia. Pavimenta, assim, o caminho da discriminação, por implicitamente considerar que um grupo vale mais que os outros. É, portanto, o
oposto do que deve buscar a educação
quanto a combater o preconceito.
O Senado perpetua, no gesto, situação inaceitável, de que todos da sociedade brasileira que não se enquadrem
na denominação "católicos" -como
tipo de "identidade original" da nação- sejam os "outros", em vez de
sermos todos o original "nós" de uma
democracia que deve ser nutrida pela
laicidade do Estado.
Pois, ao fundar-se como laico desde
a proclamação da República, o Brasil
propõe-se a viver o pluralismo característico da democracia.
Conforme Theodor Adorno, a pluralidade religiosa, étnico-racial, cultural, lingüística, quando presente na
composição de um Estado, é a face visível do pluralismo político, em si presente na consciência de cada um e,
por isso, invisível.
Daí a relevância educativa dos trabalhos com a pluralidade cultural, do
ponto de vista da cidadania, pela evidência pedagógica do respeito e da valorização de todos. Ao restringir essa
possibilidade, privilegiando um grupo, é colocado em risco o princípio
democrático do pluralismo, faltando
então o caráter que tem a lei de ser
educadora da sociedade.
Feriado nacional, estabelecido pelo
Estado laico, é para celebrar cidadãos
exemplares (apenas humanos, não
necessariamente santos, mas certamente justos) que contribuíram com
o Estado de forma relevante, na humanamente falível esfera pública, em
que o poder se estabelece como ação
em concerto, conforme Arendt.
Por reconhecerem-se como humanos, compreendem os seres democráticos que se necessitam mutuamente
para estabelecer o bem comum, que a
nenhum pode excluir. Assim, melhor
seria que o Congresso estabelecesse o
Dia Nacional da Liberdade de Consciência e de Crença, celebração laica
que a todos unirá, ou que finalmente
aprovasse o Dia de Zumbi, de todas as
gentes, como feriado nacional.
ROSELI FISCHMANN, 53, doutora e livre-docente, é professora do programa de pós-graduação em educação da USP e expert da Unesco para a Coalizão de Cidades contra
o Racismo, a Discriminação e a Xenofobia.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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