São Paulo, terça-feira, 07 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O novo espectro

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Em 1848, Marx e Engels anunciavam que um espectro assombrava a Europa, contra o qual todos os poderes da velha Europa se uniam, tentando exorcizá-lo. Esse espectro era o comunismo, a luta dos operários contra o capitalismo que transformara a dignidade pessoal em valor de troca e reduzira todas as liberdades a uma só, a do comércio livre: "Estes operários (...) são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio e estão, por isso, igualmente expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as oscilações do mercado".
No passado século e meio, esse espectro foi exorcizado na Europa por três vias principais: a social-democracia, o comunismo soviético e o nazi-fascismo. Os dois últimos, depois do Holocausto e do Gulag, passaram de exorcismos a outros tantos espectros a exorcizar. E para os exorcizar restou apenas a social-democracia. Desde há duas décadas, a globalização neoliberal tenta transformar a social-democracia num espectro a exorcizar pelo comércio livre.
A esquerda européia, legítima herdeira da social-democracia, não se deu conta de que, ao aceitar exorcizá-la, em nome do neoliberalismo, se ia a pouco e pouco transformando, ela própria, num espectro de si mesma. Teremos fechado o círculo? Será que o neoliberalismo, qual face de Janus, está a transformar-se, igualmente, de exorcismo em espectro? Os êxitos eleitorais de Le Pen na França e de outros partidos da extrema direita noutros países da Europa serão uma manifestação invertida desse espectro? Será esse espectro o neofascismo? Qual será a via para exorcizá-lo?
A história não se repete, embora não deixe de ser perturbador que os grupos sociais que menos integração obtiveram na social-democracia ou que mais rapidamente estão a ser dela expulsos -os jovens e os trabalhadores atingidos pela precarização da relação salarial- se sintam numa situação algo semelhante à descrita pelo "Manifesto Comunista" e que não tenham à sua disposição uma solução auspiciosa do tipo daquela que era prometida pelo manifesto.
Será, então, o espectro o neofascismo? A história européia mostra que o espectro de uns foi o exorcismo de outros, e vice-versa. Daí a importância crucial do modo como se define o espectro e de quem se pretende beneficiar e atingir com tal definição.


O novo fascismo não é um regime político; é antes um regime social, um sistema de relações sociais muito desiguais


À direita européia interessa que o espectro seja definido como neofascismo. Com isso ela conseguirá o esvaziamento definitivo da esquerda, já quase exangue. É uma armadilha em que a esquerda européia facilmente cairá, tão profunda está nela inscrita a luta antifascista. Para sobreviver, no entanto, a esquerda não poderá cair nela.
Em minha opinião, o espectro não é o neofascismo, mas algo de mais novo. É um espectro bicéfalo. A sua primeira cabeça é a eventualidade de, à medida que a democracia perde a sua capacidade para redistribuir riqueza social, estarmos a caminhar para sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas.
O novo fascismo não é, assim, um regime político; é antes um regime social, um sistema de relações sociais muito desiguais que coexiste em cumplicidade com uma democracia política socialmente desarmada.
A segunda cabeça do espectro é a tentação hegemônica de pensar que a primeira cabeça do espectro pode ser exorcizada nos países ricos mediante a contínua e crescente exploração e humilhação dos países pobres. Esta segunda cabeça é a globalização neoliberal, tal como está constituída, e é a mais insidiosa, porque, no deserto de alternativas por ela criado, arroga-se credivelmente ser a única solução do problema que ela própria constitui.
Nessa definição, o espectro, longe de ser europeu, é global e só pode ser exorcizado globalmente. Isso significa que as lutas locais e nacionais têm de ser articuladas globalmente, no pressuposto de que não é possível outra Europa mais solidária sem que outro mundo, mais solidário, seja igualmente possível.
A mensagem do Fórum Social Mundial e as práticas dos movimentos e organizações que o constituem são, assim, a única alternativa à "lepenização" da Europa; lepenização que, aliás, sob outra forma está já a ocorrer nos EUA.


Boaventura de Sousa Santos, 61, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).



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