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São Paulo, quarta-feira, 07 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O terror penal

MIGUEL REALE JÚNIOR

O Congresso Nacional vem de receber das mãos do presidente da República as emendas constitucionais de reformas tributária e previdenciária. Será uma árdua discussão, mas sempre caracterizada por um discurso racional, entremeado de negociações. As soluções poderão ser eventualmente injustas para o contribuinte e para o servidor público, mas jamais fruto da emoção, do irracional e do irrazoável. Não é o que sucede com a legislação penal recentemente produzida e com a que se está em vias de produzir.
A crescente criminalidade violenta, organizada ou do varejo (esta mais amplamente atingindo a sociedade), exige medidas de contenção, e compreendo que o parlamentar sinta-se responsável por fazer algo, lançando mão do instrumento que tem à disposição: a elaboração legislativa. Desse modo, acredita que o endurecimento da lei penal e de execução penal constituirá o remédio para tão grave doença social, respondendo de forma emocional, desproporcional, sem avaliação das soluções do problema em outros planos. Simploriamente recorre ao rigor da lei, dando-se por satisfeito com essa ilusão.
Há décadas existem análises das causas da criminalidade violenta, sendo descabido lembrá-las neste artigo. Tais estudos indicam ser o grande problema das cidades brasileiras com mais de 500 mil habitantes a ausência do Estado, a ausência física de seus agentes nas áreas de periferia e a completa falta de assistência médica, judiciária, sanitária, educacional, sem lazer e viabilidade de convivência sadia, restando como único divertimento o boteco. Ausente o Estado, instala-se a lei do mais forte e a criminalidade semi-organizada ou organizada assume o seu papel.
O recurso ao rigor penal iniciou-se com a Lei dos Crimes Hediondos, de 1990, instituída em clima emocional, após o sequestro de Roberto Medina. Cominaram-se penas elevadas a serem cumpridas em regime fechado, e não se reduziu o número de sequestros para obtenção de resgate, os latrocínios, os homicídios qualificados. Portanto a experiência ensina que o rigor da lei constitui uma ilusão penal, que não surtirá efeitos de redução do crime ao se tratar o criminoso como inimigo interno.
A pena de morte já existe no Brasil, com os números assustadores de civis mortos pela polícia em São Paulo no primeiro trimestre deste ano, sempre com a escusa de que houve confronto, sem se preservar o local do crime para constatar a versão, com remoção do suspeito ao hospital e morte no trajeto.
A polícia antes atira e depois pergunta, sendo vítimas as pessoas pobres da periferia, que sofrem a violência da criminalidade e da polícia. Instalada a pena de morte, que transita em julgado na rua, nem por isso reduz-se a criminalidade, em especial os roubos.


Cumpre conclamar os parlamentares a parar para pensar e produzir uma legislação penal dirigida pela razão


Montesquieu, no século 18, já observava que um governo violento estabelece penas cruéis em vez de executar corretamente as antigas. Tal se deu em face dos roubos de carruagens, para os quais se criou o terrível suplício da roda, que os suspendeu por algum tempo; no entanto logo voltaram a ser como dantes.
Agora surge como sanção disciplinar para falta grave, e não apenas excepcionalmente em caso de direção de ação criminosa de dentro do presídio, o recolhimento em cela pelo prazo de um ano no projeto aprovado na Câmara dos Deputados. No Senado aumenta-se para dois anos, podendo ser estendido indefinidamente. Autoriza o substitutivo entrevista com advogado tão-só uma vez por mês, a ser filmada, comunicando-se à Ordem dos Advogados e ao Ministério Público o nome do advogado, visto por suspeito de conluio com o cliente ao exercer sua profissão de defensor. Passam a existir os homens direitos, com direitos, e os homens não-direitos, sem direitos.
Como assinala Caffarena, da Universidade de Sevilha, o isolamento celular deve ser excepcional, pois gera problemas psicossociais com labilidade afetiva, passando da agressividade à submissão, com estados de ansiedade, sendo certo que o isolamento por alguns dias causa conflitos de personalidade irreversíveis. Antes de legislar deve-se ouvir a ciência, para não consagrar pena cruel, vedada pela Constituição.
O terror penal cria um clima de violência institucional, passando à sociedade a lição da legitimação da violência como a única resposta à complexa questão da criminalidade, sem resultados práticos senão o de exacerbar os ânimos de vingança e de ódio, com a divisão do país em dois pólos, o eixo do bem e o eixo do mal, sendo que a ética dos homens do mal passa a dirigir a conduta dos homens do bem, que agem como tais ao impor penas cruéis e ao aplaudir as cenas do massacre no filme "Carandiru", como já aconteceu. Perde-se a dimensão ética e tudo passa a ser válido: todo mal é justificado na luta contra o mal, inclusive matar fria e injustificadamente.
A ética do bandido não pode forjar a resposta estatal. Cumpre, portanto, conclamar os parlamentares a parar para pensar e produzir uma legislação penal dirigida pela razão, como o farão na votação das reformas tributária e previdenciária, adotando como diretriz a análise desapaixonada, cobrando medidas de política criminal de cunho social e o combate à corrupção de agentes do Estado, sempre ligada ao crime organizado e à lavagem de dinheiro.
É esse o móvel do movimento contra o terror penal, que já reúne mais de uma centena de profissionais do direito e várias entidades de classe e de estudo do direito penal.

Miguel Reale Júnior, 58, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro da Justiça (governo Fernando Henrique) e secretário da Administração (governo Covas) e da Segurança Pública (governo Montoro) do Estado de São Paulo.


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