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São Paulo, quinta-feira, 07 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula, mistagogo ou estadista

JACOB PINHEIRO GOLDBERG

Trava-se a polêmica em torno do presidente. Demagogia e misticismo ou autenticidade.
Em trabalhos que realizei, a idéia de um deus brasileiro aflora o sebastianismo. E esse apelo contamina até Anthony Giddens. "Lula pode mudar não só o Brasil, mas até o mundo". A perspectiva emocional e a necessidade de crescimento, bem como distribuição mais equitativa de renda, são elementos de qualquer análise sobre a crise do nosso tempo. Cabe indagar que atitude uma sociedade toma, se de confiança, alegria, indignação, desespero, hilaridade, indiferença; porque essa postura é que vai levá-la a um comportamento de aceitação, resignação, revolta ou serenidade. Nesse aspecto, Lula tem oferecido ao PT e à sociedade amplo elenco de possibilidades.
Merleau-Ponty afirma que "nada veremos se não tivermos o meio de surpreender, questionar e dar forma a um número indefinido de configurações". O esforço de entendimento do Brasil é a base para o nosso sentimento da realidade, da qual percebemos o que nossa educação permite, conforme estereótipos e modelos. Para Ronchi, "cada observador localiza seus fantasmas segundo sua maneira de raciocinar e os elementos que traz em sua memória ou, ainda, seu treinamento", devendo-se acrescentar as demais possibilidades sensoriais do indivíduo, para aquilatarmos seu espaço crítico. Um Brasil de baixo ou um Brasil de cima. Outra tentativa de simplificar o que é complexo.
Vivemos a primeira época em que existe uma proposta concreta de dessacralizar a ótica do homem. O objetivo do retirar Deus do centro da comunidade afiniza a sistemática totalitária com o materialismo teórico e sua práxis. Trata-se de um esforço orgânico para a mudança da posição tradicional do observador. Nesse aspecto, o vermelho do MST e o verde-amarelo oferecem um colorido aberto aos achados da mídia.
A fé num salvador ou a sacralização partidária são as distorções que deslocam a perspectiva psicológica diante dos desafios do desenvolvimento.
A perda de esperança é a traição que se esconde atrás da pobreza, da deterioração urbanística, da insegurança nos empregos, da alienação dos jovens, da rejeição dos valores éticos, das dificuldades da inflação e dos esquemas econômicos e monetários. Violência, produção agrícola, recursos naturais, produção industrial e poluição são as variáveis do problema.
Cuidemos que é uma inversão patológica o que foi descrito por Aristóteles: "A maioria das pessoas pensa que uma nação, para ser feliz, precisa ser grande; mas, mesmo que estejam certas, elas não têm a menor idéia do que seja uma nação grande ou uma nação pequena...". Pois que o homem não quer só existir quantitativa, mas qualitativamente, como ser com sentido.
Roquetin, o personagem sartreano, acha que o sentimento comum da vida perdeu a graça porque não pode ser reduzido ao racional. Aliás, alguns homens acham que são racionais, mas as mulheres não, ou que os brancos são mais racionais que os negros. Rap sim, Bach não. A função totalitária é reduzir o homem a uma máquina impessoal, cobaia do progresso.



Só a teologia pode despertar o homem para a vida misteriosa, sem a qual o ser se transforma em nada

Um exemplo pode espelhar essa intenção. Em fazendas-modelo, tiram às porcas os seus porquinhos, logo depois de nascerem. Os leitões são alimentados com leite sintético, mamam em mamilos artificiais e um alto-falante transmite os grunhidos duma porca quando está a amamentar. Assim, as fêmeas têm crias três vezes por ano, em vez de duas.
Nesse universo não existem flores. Seringas e agulhas ocupam o lugar de guitarras e preces. Isso culmina com a caricatura demagógica do pai protetor e do chefe predestinado, que se presume capaz de construir um mundo melhor acionado pelo progresso científico ou por modificações dos estratos sociais.
A noção de que a justiça pudesse triunfar porque a democracia se estava expandindo, de que a educação iria igualar as pessoas, de que a corrupção iria acabar, de que a tortura desapareceria da Terra, de que a prosperidade prepararia o terreno para instituições internacionais fundadas na liberdade, igualdade e fraternidade, a partir de 1914, passa a ser questionada.
Stálin criou um regime mais funcional do que o do czar, sacrificando a piedade. O nazi-fascismo banhou em sangue a humanidade, exilando Deus.
Só a teologia pode despertar o homem para a vida misteriosa, sem a qual o ser se transforma em nada e a sociedade se brutaliza. O homem não pode, e não quer, viver com culpa e sem esperança. O Brasil culto não pode ser execrado em nome da culpa diante da miséria. Cultura não é pecado, ignorância não é virtude. Os nossos problemas não têm soluções tecnológicas ou radicais, e é preciso uma hipótese sustentável, como padrão de verificação do mundo, em que a alma possa frequentar sua carência no horizonte infinito.
A essência do processo político, hoje, exige uma resposta espiritual. Podemos determinar as tramas das relações físicas, biológicas, psicológicas e econômicas que ligam a população, o ambiente e suas atividades. Mas, se não houver a consciência do sagrado, não haverá liberdade, e a dialética da ideologia será uma estratégia de perversidade vazia, conduzindo à violência, desespero e destruição. Ideologia servida por manipulações que castram os órgãos de comunicação, sacrificam a universidade como espaço de pesquisa independente, atrelam os sindicatos ao centralismo burocrático, desagregam a família por um individualismo caótico e tornam a religião um movimento sem Deus.
E toda essa distorção da perspectiva do humano faz-se com a cumplicidade do intelectual, expressão de ansiedade e de ceticismo, pronto a pregar a coexistência da dúvida no eterno com a crença cega nos valores hedonísticos, o álcool, a pornografia, a excitação artificial, o ativismo compulsivo, mecanismos de fuga da angústia existencial. As contradições de Lula refletem muito de nossos conflitos que exigem sutileza e nitidez.
Ser um ótimo presidente ou o messias anunciado. A César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Finalmente, nesse cenário, o MST deve ser encarado como um co-protagonista para nossa introdução na modernidade, não cabendo um conflito glauberiano na terra do sol.

Jacob Pinheiro Goldberg, psicanalista, é doutor em psicologia pela Universidade Mackenzie e professor convidado pela Uniwersytet Jagiellonski (Cracóvia, Polônia).


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