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TENDÊNCIAS/DEBATES
O governo deve conceder terras na Amazônia para exploração florestal?
NÃO
Clima e cataclismo
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
O alerta vem da competente
equipe de pesquisadores especializados em mudanças climáticas, membros do Cptec (Centro de Previsão do
Tempo e Estudos Climáticos), vinculado ao Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Em resumo, concluem eles, de observações realizadas
em pelo menos duas décadas, que, a
continuar o desmatamento da Amazônia no ritmo atual e, simultaneamente,
persistir a humanidade no consumo desenfreado de combustíveis fósseis e
conseqüente aumento da temperatura
média da biosfera, ocorrerá em algumas
décadas a "savanização" de cerca de
60% da mata amazônica. Savanização é
um eufemismo para desertificação.
A queima de combustíveis fósseis e as
queimadas emitem gás carbônico e outros gases que são os principais responsáveis pelo já comprovado, lento porém
inexorável, aquecimento global, cujas
conseqüências para a vida na Terra são
imprevisíveis. Estudos realizados também no Inpe já revelam uma macabra
correlação entre as flutuações da densidade de dióxido de carbono na atmosfera e o daninho fenômeno denominado
El Niño. Anomalias, como a onda de calor que assolou a Europa no ano passado e que só na França sacrificou 2.000
pessoas, são atribuíveis, em última análise, ao efeito estufa devido ao uso abusivo de combustíveis fósseis.
Não bastassem essas ameaças, a equipe do Inpe vem nos alertar para mais
uma perspectiva lúgubre, a formação de
aerossóis como conseqüência de queimadas -essas partículas interferem na
formação de nuvens, reduzindo localmente as chuvas e a solaridade, com o
que a fitomassa é aniquilada, podendo
mesmo ocorrer queimadas espontâneas, fechando-se assim um ciclo vicioso catastrófico.
Por outro lado, 60% da Amazônia
corresponde a uma quantidade imensa
de fitomassa e, conseqüentemente, a
um aumento adicional de dióxido de
carbono na atmosfera que poderá vir a
se tornar uma calamidade universal. Senão, vejamos. De acordo com H. Klinge
e outros ("Tropical Ecological
Systems", Springer, Nova York), a densidade média da fitomassa na floresta
amazônica é de 740 toneladas por hectare na parte aérea, acrescidas de 255 toneladas de raízes. Portanto a parcela da
Amazônia que desaparecerá por queimas ou decaimento (apodrecimento)
será de 300 bilhões de toneladas de fitomassa, ou seja, o equivalente, quanto à
emissão de gases de efeito estufa, a tudo
o que a humanidade já consumiu, desde
o início da Revolução Industrial, de petróleo e gás natural.
Essa emissão poderá resultar em um
acréscimo de gases de efeito estufa na
atmosfera igual ao dobro daquele resultante das queimas de petróleo e gás natural até o presente, pois os oceanos,
que vêm absorvendo generosamente
cerca da metade do gás carbônico emitido, poderão deixar de fazê-lo. Há fortes
indícios de que esse processo está se saturando rapidamente. Podemos, pois,
esperar que, com a continuação das
queimadas na Amazônia, haja um
acréscimo de dióxido de carbono na atmosfera igual ao ocorrido desde meados do século 19 devido à queima de todos os combustíveis fósseis, inclusive o
carvão. Teremos 10%, 20%, talvez mais
da superfície da Terra inundada, o fim
da fauna marítima, incêndios urbanos,
verões insuportáveis, supressão de safras etc.
Quando, há um quarto de século, este
autor aqui no Brasil e alguns outros no
exterior, principalmente nos EUA, alertaram a opinião pública quanto ao efeito estufa, o descrédito foi total. E isso é
compreensível. Um certo grau de ceticismo é saudável e mesmo obrigatório
para o cientista. Todavia o que se observou, mesmo quando já não havia dúvidas, foi uma atitude de rejeição irracional em relação a uma realidade crescentemente adversa.
Foi assim que, insatisfeita com nossa
própria capacidade de depredação da
floresta, a administração FHC, assistida
por vorazes governadores, facultou a
instalação de madeireiras estrangeiras
que haviam exterminado a floresta em
seu país de origem, a Indonésia.
Mas parece que as madeireiras indonésias e brasileiras não estão sendo suficientemente devastadoras, posto que o
Ministério (da devastação) do Meio
Ambiente resolveu alugar a Amazônia
para madeireiras "sustentáveis". Há, é
verdade, uma vestimenta ecológica perfumada. Mas, como diz o Mefistófeles
de Goethe, "embora vestida com brocados e lantejoulas, uma pulga ainda é
uma pulga".
O pensamento predominante era, até
recentemente, o de que, consumindo
menos que 1% do combustível fóssil do
planeta, nada de muito efetivo poderia o
Brasil fazer. Mas agora o desmatamento
da Amazônia é problema exclusivamente nosso, a menos que concedamos
a internacionalização da área. Se não o
fizermos, temos de assumir essa responsabilidade. Agora que o Sivam já
realizou o objetivo para o qual foi criado
-socorrer uma empresa americana especializada em espionagem e guerra-,
poderia se dedicar principalmente ao
monitoramento de queimadas.
Se a floresta amazônica já foi um generoso e benevolente patrimônio nacional, ela hoje encerra, antes de tudo, uma
ameaça de amplo extermínio de vida
vegetal e animal, inclusive humana, que
se estende por todo o globo. Talvez seja
necessário criar um Ministério de Proteção do Meio Ambiente.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 72, físico, é
professor emérito da Unicamp e membro do
Conselho Editorial da Folha.
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