São Paulo, terça-feira, 07 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O fascismo revisitado

BORIS FAUSTO

Em artigo publicado em "O Estado de S. Paulo" (28/8), sob o título de "O integralismo revisitado", o prof. Miguel Reale sustenta a necessidade de se rever a história do movimento integralista brasileiro, do qual ele foi figura central. Tal releitura teria a finalidade de livrá-lo da pecha de hitlerista, ou mesmo de fascista, pois o integralismo seria "caracterizado por seu nacionalismo espiritualista, organizado numa associação política nacional sobre bases sindicalistas ou corporativas".
Nem de longe tenho o propósito de enveredar por uma polêmica pessoal com o prof. Reale, figura merecedora do maior respeito nos meios jurídicos do país. Se, neste texto, faço várias referências a seu artigo, é porque ele tenta recolocar, a meu ver equivocadamente, questões históricas nada desprezíveis. Preocupam-me as tentativas de justificação histórica dos totalitarismos de direita ou de esquerda, que, entre outros tópicos, passam, de um lado, pela idealização da figura sinistra de Stálin ou pela justificação do Gulag soviético, e de outro, pela reabilitação de Mussolini ou a negação do Holocausto. Nesse ponto, sinto-me aliás à vontade, pois, ao longo dos vários anos em que escrevo nesta Folha, tenho criticado, de uma perspectiva democrática, tanto o fascismo quanto o esquerdismo totalitário.
Como se sabe, a Ação Integralista Brasileira (AIB), depois convertida em partido, existiu no Brasil entre 1932 e 1937, quando foi dissolvida por Getúlio, no advento do Estado Novo. Sua pregação teve forte ressonância em setores da sociedade brasileira, numa época em que a liberal-democracia parecia se encaminhar para um estágio terminal, enquanto vicejavam as correntes autoritárias e totalitárias que prefiguravam a "aurora dos novos tempos". Dentre as várias versões da aurora, qual delas o integralismo anunciava? Em poucas palavras, a aurora do fascismo em versão brasileira, mas nem por isso menos fascista.


Preocupam-me as tentativas de justificação histórica dos totalitarismos de direita ou de esquerda


Para tanto, convém lembrar as características básicas do fascismo que o distingue de outras correntes de direita, dentre elas as autoritárias e o conservadorismo católico. Ele se definiu como um movimento e um regime político antidemocrático, que tratou de abranger todos os aspectos da vida social, da esfera política à cultural, a exemplo de outros totalitarismos. Seu instrumento essencial de poder localizava-se no Estado, com a liderança concentrada no líder máximo, representado tipicamente por Mussolini, na Itália. Nesse aspecto, o fascismo distinguia-se do hitlerismo, pois este concebia o partido único como instituição do Estado, enquanto o hitlerismo deu ao partido maior dimensão, transformando-o no Partido-Estado.
Movimento moderno, distinto dos velhos conservadorismos, o fascismo soube utilizar, antes dos nazistas, o simbolismo dos grandes rituais como processo eficaz de identidade: as grandes cerimônias de iniciação e de comemoração, as bandeiras, as cores, os gestos etc. Todos esses traços, ressalvadas as proporções, eram elementos essenciais do integralismo na sua versão brasileira, o que nos leva a identificá-lo como fascista.
Diz o prof. Reale que "variantes pessoais", não redutíveis às opiniões de Plínio Salgado -o chefe nacional-, faziam parte do integralismo. Isso não constitui novidade nem altera a marca fascista do movimento, mesmo porque houve também diferenças no âmbito do fascismo italiano e do hitlerismo, algumas das quais liqüidadas, outras domesticadas.
Entre as "variantes pessoais", o prof. Reale lembra a figura de Gustavo Barroso, que, em suas palavras, "distinguia-se por seu anti-semitismo, não de caráter racial ou religioso, mas apenas do ponto de vista econômico (...)". Não é o caso de entrar aqui numa discussão minuciosa do anti-semitismo de Barroso. O fato é que esse aparentemente desculpável anti-semitismo de corte econômico foi um dos mitos integrantes do anti-semitismo tradicional que Hitler incorporou com eficácia social para obter apoio e justificar, entre outras razões, a sanha contra o povo judaico que desembocou no Holocausto.
Gustavo Barroso, membro da augusta Academia Brasileira de Letras, à qual comparecia envergando por vezes a camisa verde integralista, foi um admirador sem restrições do nazismo e fez da erradicação do "lixo judaico" uma de suas pregações preferidas. Quem quiser conferir a paranóia do personagem pode percorrer não só o livro "Brasil, Colônia de Banqueiros", como também "A Sinagoga Paulista", um detonador de riso e de náusea.
A interpretação e reinterpretação da história é um processo inevitável e, mais do que isso, saudável. Mas nem tudo está sujeito a reviravoltas. Digam o que disserem os chamados pós-modernos, há uma verdade histórica que se encontra assentada. Para ficar em uma única caracterização, o comunismo e o nazi-fascismo, diferentes entre si, foram a grande árvore de desgraças do século 20. O integralismo representou um ramo tropical dessa desgraça, que felizmente não chegou ao poder. Pretender revalorizá-lo parece-me uma tarefa inglória e, mais do que isso, perniciosa.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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