São Paulo, quarta-feira, 07 de setembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Gritos (e lamentos) do Ypiranga

ROBERTO BUSATO

Há hoje, ecoando por todo o país, um grito que se sobrepõe ao do Ypiranga, cujo 183º aniversário celebramos. É o grito de indignação da sociedade brasileira contra a corrupção e a impunidade, mazelas que se somam e realimentam em nossa paisagem político-institucional -e cuja remoção é desafio que persiste e se agrava ao longo dos séculos.
Poderá o Brasil celebrar sua efetiva independência enquanto se mantiver refém de si mesmo? Eis aí uma boa reflexão para este 7 de Setembro. A crise política deflagrada pelas denúncias do deputado Roberto Jefferson, a quem o presidente Lula disse que daria um cheque em branco e, a seguir, dormiria em paz, impõe outras avaliações acerca de nós mesmos, como nação.


O inaceitável é que Lula seja condenado e, simultaneamente, preservado em face de interesses eleitoreiros


Hoje, o principal inimigo nacional está dentro do próprio país. É a banda podre de suas elites dirigentes, que continua a ter presença hegemônica no jogo do poder. Em artigo publicado em 1861, no "Diário do Rio de Janeiro", Machado de Assis, nosso escritor maior, constatava haver dois Brasis, o real e o oficial. E sobre cada qual fazia esta análise, que, após 144 anos, se mantém atualíssima:
"O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política, nada temos a invejar ao reino de Lilipute."
De lá para cá, podemos dizer que houve efetiva evolução em nossa política? Deixou ela de ser povoada pelos anõezinhos morais que Machado comparou aos que Gulliver encontrou em Lilipute? Quando o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, propõe abrandar as penas dos parlamentares envolvidos em atos de corrupção explícita, valendo-se de expedientes burocráticos para retardar o julgamento, sentimos que a dualidade mencionada por Machado persiste. O Brasil liliputiano continua vivo -e no comando.
Há também, é claro, o Brasil do bem, de que o próprio Machado de Assis, artista oriundo das camadas populares, é exemplo. Mas esse Brasil, embora presente no Parlamento e em todas as instituições políticas, ainda não chegou ao poder. O presidente Lula foi eleito com a missão de fazê-lo chegar, mas fracassou. Para surpresa geral, mudou de lado. Em curto espaço de tempo, mostrou-se afeiçoado aos usos e costumes do velho Brasil, aquele que, como fênix, renasce sempre das próprias cinzas.
Em 1930, fez-se uma revolução para pôr fim à "República dos Carcomidos". Mas ei-la, rapidamente, de volta, a assumir o comando da própria revolução e a levá-la sete anos depois ao golpe ditatorial do Estado Novo. A redemocratização, a partir de 1945, foi turbulenta e durou pouco: passou pelo suicídio de Vargas, por duas tentativas de golpe contra JK, pela renúncia de Jânio, pela queda de Goulart, desaguando numa ditadura militar que duraria duas décadas, inaugurando nova era de velhos maus costumes na cena brasileira.
O pretexto do golpe militar foi o combate à corrupção e à subversão, mas ele próprio acabaria tornando-se agente de ambas. A redemocratização, a partir de 1985, inaugurou a era das CPIs, na qual ainda estamos. Cada governo, desde então, passa a conviver com um ambiente de denúncias, reais e efetivas, que geram contra-ofensivas de operações-abafa e introduzem novos termos e metáforas no universo semântico da política nacional, como "pizza" e impeachment. Já tivemos um presidente eleito deposto, Fernando Collor. E estamos diante de outro que revive aquela circunstância.
A expressão "assar uma pizza" tornou-se recorrente. Significa selar acordo de impunidade entre os agentes da política. Negocia-se solução de cúpula em que acusadores e acusados barganham interesses à revelia da opinião pública. A indignação da sociedade em face dos fatos serve apenas de munição para pressionar o lado acusado e fazê-lo pagar um alto preço pela impunidade.
É o que acontece presentemente. Tão indecente quanto a roubalheira é a tentativa de minimizá-la, manipulá-la politicamente. A idéia de manter o presidente da República "sangrando" para que chegue fraco às eleições é inqualificável. Se o presidente delinqüiu, deve responder por seus atos, nos termos da lei. Se é inocente, deve ser preservado. O inaceitável é que seja condenado e, simultaneamente, preservado em face de interesses eleitoreiros.
Isso é ainda mais grave que a pizza. É, como dizia Ulysses Guimarães, fazer piquenique na boca do vulcão. O presidente Lula tem responsabilidade no desconforto moral em que está. Até hoje não proferiu uma palavra efetiva que convença a sociedade de sua inocência. Diz-se traído, mas não revela por quem nem por quê.
Traição ao presidente da República não é questão de foro privado, é questão institucional. Quem trai o supremo mandatário do país trai o país. E o mínimo que se pode exigir é que a sociedade saiba os nomes dos que a estão traindo. Esse o grito que, neste 7 de Setembro, nos impede de ouvir e celebrar condignamente aquele outro que os nossos ancestrais nos legaram -o Grito do Ypiranga.

Roberto Busato, 50, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).


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