São Paulo, sexta-feira, 07 de outubro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Segurança e medo

BORIS FAUSTO

Nas últimas décadas, muitos indicadores sociais do Brasil melhoraram. Entre eles, os índices de mortalidade infantil, de expectativa de vida, de pessoas alfabetizadas, de crianças e jovens cursando o ensino fundamental. Mas, em matéria de segurança do cidadão e, portanto, de avanço da criminalidade, chegamos a níveis insuportáveis. É preciso insistir no tema, mesmo com o risco de repetir coisas sabidas, quando mais não fosse para enfrentar a resignação e a banalização da violência na vida cotidiana.


As tensões sociais de uma sociedade tão desigual acabaram se canalizando para a violência sob forma individual


Alguns traços básicos da onda de criminalidade apontam para a sua extensão geográfica, para a criação de novos tipos de delito, para o aumento do grau de agressividade dos infratores. Instaurou-se também um clima de medo, revelado pelas medidas defensivas que as pessoas vêm tomando, com boas razões. Os muitos ricos tentam se proteger com automóveis blindados, empresas de segurança especializadas, escoltas, câmeras etc. A classe média recorre mais às cercas eletrificadas, aos precários vigilantes de rua, despreparados e assustados. Os pobres da periferia se trancam em suas casas à noite e arriscam a vida ao sair muito cedo, a caminho do trabalho, nos pontos de ônibus e nas estações de trem. Isso sem se falar do cenário mais geral dos "toques de recolher" impostos pelo crime organizado, dos túneis fechados convertendo-se numa armadilha onde as pessoas correm tomadas pelo pânico, das áreas de favela -território que o Estado não controla e onde a força policial penetra esporadicamente, como ocorre no Rio de Janeiro.
Por que chegamos a essa situação? Já vai longe o tempo em que se atribuía a criminalidade apenas à pobreza e à miséria, o que era uma injúria a milhões de pessoas honestas que sobrevivem em meio a penosas condições de existência. Mas as tensões sociais de uma sociedade tão desigual, em que os protestos coletivos são proporcionalmente reduzidos, acabaram se canalizando para a violência sob forma individual. À desigualdade - uma constante da nossa história - veio se juntar a crise da instituição familiar, a quebra generalizada de valores, a busca de "felicidade imediata", a qualquer preço, tendo por objeto do desejo os bens de consumo multiplicados -dos tênis de marca numa ponta aos carrões de luxo, na outra.
O crescimento econômico, se associado à ampliação do emprego, pode melhorar o quadro aqui sumariamente descrito. Mas não há automatismo entre o que ocorre na área da economia e na área da criminalidade. Basta lembrar um dos aspectos mais graves do problema -o tráfico e consumo de drogas, opção tentadora de ganhos vultosos, em que não só gente de favela como de classe média está envolvida pesadamente.
Essas linhas não pretendem contribuir para o reforço de um clima catastrófico. É justo reconhecer que medidas vêm sendo tomadas no sentido de reverter o quadro atual. No Estado de São Paulo, que conheço mais de perto, são inegáveis os avanços das polícias Civil e Militar em tecnologia e na preparação de seus quadros, com resultados apreciáveis. Exemplificando: os dados revelam que, do segundo trimestre de 2002 até o segundo trimestre de 2005, a queda de homicídios dolosos foi de 40% em todo o Estado (44% na capital). Com relação aos seqüestros, tomando-se em consideração o mesmo período, houve uma redução de 69% no Estado (73% na capital).
Ao mesmo tempo, algumas experiências que combinam medidas preventivas e repressivas com uma constante atuação social, numa associação entre prefeituras, polícia e ONGs, têm produzido efeitos localizados muito positivos, no caso de bairros como o Jardim Ângela, ou de uma cidade da Grande São Paulo, como Diadema.
Também a campanha nacional pelo desarmamento vem contribuindo para reduzir os crimes contra a pessoa, sendo de esperar que o plebiscito, já próximo, aprove a proibição. Ela se justifica não só pela incapacidade da imensa maioria da população de utilizar armas adequadamente, mas, sobretudo, porque dispor de armas à mão significa muitas vezes tirar a vida de alguém, em situações que poderiam não passar de agressões de efeitos limitados.
As indicações positivas não pretendem significar, nem de longe, que o quadro geral de insegurança está em franca desaparição. Se muitas distorções sociais e muitos erros levaram ao cenário atual, sua reversão demandará um leque variado de iniciativas, em macro e microescala, envolvendo redução do desemprego, oportunidades educativas atraentes, medidas policiais eficazes, preventivas e repressivas, como sabem os especialistas melhor do que eu. Mas as indicações positivas demonstram que é possível atuar eficazmente, tendo como meta garantir a tranqüilidade dos cidadãos, entregues muitas vezes à descrença e ao desespero.
A profunda reversão do quadro negativo não tem condições de ocorrer a curto prazo. Mas, se as pessoas perceberem ganhos tangíveis nesse caminho, passarão, pouco a pouco, a se livrar do medo, a se sentir seguras em casa e a ocupar o espaço público pelo qual hoje transitam furtivamente. Coisas elementares, diria um habitante das terras nórdicas. Grande avanço!, diriam, aliviados, milhões de brasileiros decentes.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).


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