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São Paulo, sexta-feira, 07 de novembro de 2003

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JOSÉ SARNEY

Cochrane, Iraque e Rachel

Estava lendo um livro sobre as guerras da independência, a narrativa "No Libertar-se o Brasil da Dominação Portuguesa", de um sujeito pelo qual não tenho nenhuma simpatia: um tal de Lord Cochrane, como diria Juan Rulfo, ao falar de Pedro Páramo. É que ele foi contratado pelo imperador dom Pedro para fazer o que tinha feito no Chile, participar das lutas pela consolidação da independência, é claro que pago e muito bem, como sempre exigiam os almirantes ingleses, chamados por alguns de piratas.
Ele chegou ao Maranhão para fazê-lo aderir à independência. Destituiu o presidente da Província, exigiu resgate da cidade e, alegando que o Império não lhe pagava o que devia, fugiu com a "gaita" para a Inglaterra. A memória de São Luís o tem, até hoje, como saqueador. O nosso dom Pedro 1º deu-lhe o título de marquês do Maranhão, o primeiro agraciado da grande lista dos nobres brasileiros. Está sepultado na Abadia de Westminster, com direito a lápide: "Lord Cochrane -marquês do Maranhão". Olhei, passei ao lado, resmungando: "corsário".
Nas memórias, que o Senado agora pública nas suas extraordinárias edições de obras raras, ele confessa que pilhou a cidade, "assunto que, para mim, há sido causa de tanta censura". Desculpa-se: isso poderia "representar-se como um roubo escandaloso, apesar de não ser mais que um quarto da soma devida [a ele] pelo Império brasileiro".
Alegava Cochrane: "A Junta da Fazenda mandou-me uma comunicação verbal dizendo que dariam a quantia concordada em comutação pelo dinheiro de presas devido aos tomadores. Sabendo eu que, em caso de ir-me embora" -o que ele fez-, "tais letras não valeriam o papel em que fossem escritas, rejeitei a oferta". E, sem maior reserva, orgulha-se de ser "um homem que havia sido contratado sob a estipulação expressa do direito às presas".
Não satisfeito com isso, justifica o saque do Maranhão por ter encontrado a esquadra "com demoras nos pagamentos, que eram o triplo das contas contratadas", tudo justificado, já que, "o governo não pagando em dia, eles tinham de aumentar o preço". Coisas de antigamente. Falava mal da Junta da Fazenda, contando coisas que hoje seriam inconcebíveis : "Ela possui tão baixo crédito que suas letras têm sido vendidas a 30% de desconto, e sou crivelmente informado que em tempo nenhum se pode receber dinheiro do Tesouro sem se pagar uma forte percentagem aos empregados inferiores".
Era o motivo para a pilhagem. O governo não pagando, pagavam os particulares saqueados. Aliás, esse negócio de presas de ocupação está sendo utilizado ainda hoje no Iraque. Em vez das pobres jóias maranhenses, o petróleo. E o senhor Dick Cheney tem direito também a suas empresas.
É nessas leituras e meditações que sofro a comoção da morte de Rachel. Santa de altar, Nossa Senhora da Academia, e deusa da nossa literatura. Lembro-me da Rachel, escritora magistral e figura humana dessas que em cem anos acontecem apenas poucas vezes. Nos últimos dias, dizia a Emília Lobato, que lhe propunha trazer um queijo da França, o brie, de que tanto ela gostava: "Não traz, não, isso é coisa que só é boa no pé".
E me advertiu quando falou do Álvaro Pacheco: "Cuidado com os poetas, Sarney, eles gostam de fazer a gente sofrer, cantando dores que não sentem".
Rachel, adeus. E a Lord Cochrane: tô nem aí!


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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