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São Paulo, sexta-feira, 07 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Direito à crítica e à oposição

ROBERTO ROMANO

Claude Lefort não aprecia a frase inglesa "right or wrong, it is my country" (certo ou errado, é o meu país). O enunciado, de fato, indica o limite cerebral dos energúmenos.
Ele obnubila o pensamento filosófico, os versos de Milton e a poesia metafísica, o teatro de Shakespeare e o de Marlowe, formas que honram a Inglaterra, o país da inteligência aguda (o famoso "wit"). Após o desagrado em face do patriotismo de fancaria, Lefort volta-se contra a idéia do partido infalível. Diz-se surpreso ao notar que Leon Trótski invocou termos semelhantes aos do ditado inglês para se referir à sua agremiação política.
"Curiosamente e de modo significativo, no momento culminante de seu conflito com Stálin e de sua capitulação (temporária, é verdade), ele diz que o partido, com razão ou errado, estava acima de tudo. O nacionalismo, como o comunismo, corre o risco de precipitar o pensamento num abismo" ("Temps Modernes", "Nation et Souveraineté").
Na política existem inúmeros abismos do pensamento, como ocorre nas traições dos intelectuais. Algumas delas renderam fama e dinheiro, além de poder, aos que outrora pavoneavam razão, ética, moral na vida pública. Outras jogaram os espertos na merecida insignificância. A máquina de moer convicções é impiedosa. Todo novo governo estraçalha antigos valores.
Recordo a lucidez de Jean Kott, pensador do teatro, quando escreve sobre as sucessões principescas em Shakespeare. Nelas sempre surge, na ação da grande máquina do Estado, "um raio de consciência". Enquanto a maioria está condenada à comédia que mistura "os mecanismos do coração humano e o mecanismo do mando, a entoação da voz, o medo, a lisonja", alguns cérebros percebem o que se passa e são condenados à cumplicidade ou à denúncia. E surge a tragédia.
É o caso de Trótski. Após hesitar por instantes, ele nota o que está em jogo e resiste ao poder de um assassino vulgar promovido a proprietário do império soviético. O fim da tragédia é conhecido: campos de concentração onde milhões foram postos nos braços da morte e o assassinato do líder que não aceitou o papel de palhaço da corte.
O partido sempre tem razão. O poderoso, instalado nos palácios, sempre está certo. É desagradável o indivíduo que não dobra a espinha e não canta louvaminhas aos novos príncipes. Assim afirma a didascália tirânica. Muitos, que na juventude foram trotskistas e agora estão em ministérios, entoam o cântico "realista". O adesismo tem causas, entre elas o medo. Na ditadura militar, o mote "eu preciso sobreviver, entende?". Os silêncios, aprovações, justificativas serviram para instalar o terror das torturas, das censuras, das intimidações contra juízes e advogados. Eram proibidos o pensamento crítico e a oposição política. Arrogantes, os militares deixaram os palácios rumo às casernas.
No regime civil continuou o veto ao pensamento autônomo. No longo período Sarney, a oposição liderada pelo PT foi posta no ridículo e perseguida.


O dinheiro não é o nervo principal da política. Entendam, se ainda tiverem os neurônios em ordem
Lembro-me de muitos debates com intelectuais que na época pertenciam ao PMDB e hoje lambuzam as botas do governo. Eles afirmavam que os petistas eram xiitas, fanáticos moralistas. Durante os governos Collor e FHC, a mesma violência contra os críticos orientou as falas e os atos dos poderosos e de seus chaleiras. Alguns acadêmicos julgavam correto e indiscutível o costume que autoriza o governo a distribuir recursos em primeiro lugar para os apoiadores, sem outros considerandos de interesse público. O maquiavelismo nanico é uma das faces dos intelectuais bajuladores.
Hoje, uma parte do governo impõe obediência aos seus fins e tenta o enquadramento dos críticos, a perseguição dos oponentes, as ameaças de censura ou cooptação diante da imprensa. A maioria dos intelectuais permanece silente. O pronunciamento do publisher da Folha, Octavio Frias, sua denúncia sobre o cerco aos meios de comunicação, deve ser discutido por todos os que têm responsabilidade no Brasil.
Outro dia, ao ser entrevistado, ouvi por várias vezes de competente jornalista a frase: "quase toda a imprensa, salvo a Folha, atenua neste instante as críticas ao governo". Os motivos são óbvios e de conhecimento público. Se o partidarismo e o nacionalismo irrefletidos são péssimos, pior é a farsa dos que apóiam políticas tirânicas para salvar a conta bancária. Se existe necessidade de financiar a mídia pelo governo, que isso se faça à luz do dia, sem contrapartidas políticas ou ideológicas.
Não, amigos petistas que se imaginam maquiavéis, essa proposta não é angélica. Ela é cerne da ética.
Como na guerra, o dinheiro não é o nervo principal da política. Entendam, se ainda tiverem os neurônios em ordem.

Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo), entre outras obras.


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