São Paulo, sexta-feira, 08 de março de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma mulher na Presidência

ROSE MARIE MURARO

Agora que a candidatura Roseana Sarney está se tornando menos confiável, mais do que nunca cabe a pergunta: que diferença existe entre uma mulher e um homem na Presidência da República?
O inconsciente popular encara a mulher como mais honesta, menos corruptível e mais altruísta que o homem. De fato, ela foi socializada durante 8.000 anos, para ser a cuidadora única da criança. E, se o bebê não tivesse uma pessoa realmente altruísta cuidando dele, não sobreviveria nem um dia.
Desde o início do período histórico o homem destinou a si o domínio público da conquista do poder, da riqueza, do conhecimento, com as consequentes guerras e a competição. Nesse mundo vale a lei do mais forte, a pura e fria correlação de forças. À mulher destinou o mundo da casa, onde vale o cuidado, o altruísmo, a emoção e onde a lei é a cooperação, a partilha.
Assim, homens e mulheres vivem em mundos opostos e até incompatíveis.
Quando, no século 20, a mulher voltou para o mundo público (anos 60 e 70), num primeiro momento ela quis assumir valores "masculinos", mas fracassou. Nos 80 começou a trazer para o público os valores com que havia sido socializada e acertou, ganhando nesses 20 anos, inclusive, pouco a pouco, mais respeito que o homem.
As empresas que esse tipo de mulher administrou têm uma produtividade maior do que as dirigidas por homens, porque elas não mandam pela força, de cima para baixo, colocando subordinados uns contra os outros, mas o fazem ouvindo os empregados, conseguindo consenso em vez de o impor e, assim, esses subordinados acabam "vestindo a camisa" da empresa, ao invés de sabotá-la quando podem. Em lugar de formar grupos que lutam entre si, trabalha construindo redes em que o poder vai se descentralizando e sendo considerado mais um serviço que um privilégio.


O inconsciente popular encara a mulher como mais honesta, menos corruptível e mais altruísta que o homem


Nos EUA, diz-se que os homens fazem bandos, as mulheres criam redes. E as empresas geridas por mulheres cresceram, nos anos 90, três vezes mais que as dirigidas por homens.
Espera-se, neste país, na primeira década deste século, uma mulher na Presidência da República, pois já há suficiente massa crítica de qualificações para que isso aconteça.
No Brasil ainda não é assim. Corre-se o risco de uma mulher, se eleita, ficar refém do antigo sistema competitivo.
No entanto já presenciei alguns projetos pontuais que podem dar um pálido exemplo do que seria um Estado governado por uma mulher.
No nível federal, por exemplo, acompanhei, no Ministério do Desenvolvimento Agrário, a trajetória das mulheres. Primeiro, conseguiram cota de 30% das decisões ministeriais. Depois, persuadiram os técnicos (inclusive os de ponta) a colocar os lotes de terra em nome das mulheres com filhos, o que foi sancionado pelo ministro em 8/3/01. Isso porque pesquisas demonstraram que os homens tendem a se endividar e vender os lotes a qualquer preço (em geral para o latifundiário), aumentando portanto o latifúndio e inchando as favelas das grandes cidades, ao passo que as mulheres tendem a se fixar no campo, o que desincha as favelas, aumenta a safra de grãos e torna mais barata a comida.
Ora, isso muda a própria estrutura da reforma agrária, tornando-a mais sólida e enraizada.
No Ministério da Educação, outro exemplo, se se conseguir dar um enfoque de gênero aos livros didáticos (e já existem tentativas nesse sentido), a relação entre homens e mulheres nas novas gerações muda e, com isso, o homem deixa de ser o opressor e a mulher a oprimida. Assim, uma incrível transformação silenciosa vai se processando na própria cadeia das gerações, o que em médio prazo pode mudar até a estrutura do Estado e do sistema econômico. E assim por diante.
No nível estadual, vi uma secretária de governo na área econômica começar a organizar os trabalhadores informais, em vez de conceder benefícios fiscais às grandes empresas para que se instalassem lá.
Outra mulher ainda, encarregada do almoxarifado estadual, não liberava para os dirigentes material luxuoso, mas o absolutamente necessário. Se isso fosse generalizado, mudaria também a própria estrutura do consumo.
E vi inúmeros outros casos.
Quanto ao poder central, essa mudança ainda está adiada, pois, como venho dizendo, todos os governos masculinos privatizam em seu favor os recursos e o poder públicos. Se não fizerem isso, não se mantêm. Isso sem falar nos conchavos internacionais.
Uma mulher, se governasse em rede, por consenso, de baixo para cima, democratizaria o capital e, com algumas centenas de milhões de reais, acabaria com a miséria. Mas acho isso impossível de uma mulher que pertence a e está comprometida com um partido que se mantém no poder há muitos anos pelo fisiologismo e pela privatização dos recursos e do poder.
Nesse caso, prefiro votar num homem que apresente e realize um programa consistente de gênero.


Rose Marie Muraro, 70, escritora e feminista, é membro fundadora do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e autora, entre outras obras, de "Memórias de uma Mulher Impossível".



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